sexta-feira, 26 de março de 2010

Pedaços

Quando se olhava no espelho, não via muito mais do que uma menina magrela sem graça. Parecia ter a mesma cara desde os doze anos de idade. É fato que há muito perderá aquelas bochechas levemente rosadas. E que também os olhos, ou melhor, o olhar, tinha ganhado uma expressão mais madura ou cansada. O sorriso era o mesmo. Mas tinha algo no rosto, talvez fosse mesmo o olhar, que trazia diante dela uma mulher e não mais uma menina. Mas ainda se achava sem graça.

Hoje era um daqueles dias de remexer nas caixinhas de passado. Passado em cartas, em foto, em pequenos bilhetes, em embalagens de chocolates, em folhas de agenda. Estava de pijama. Sentada no meio da cama, cercada de várias partes suas que foram se perdendo nesses anos. Tudo vinha e ia tão rápido. Um sorriso dava lugar a grossas lágrimas e logo o rosto ficava como que contemplando o invisível. Alegria, saudade, tristeza, medo, orgulho, vergonha, arrependimento, bom, para ser exato, ela se recusava a deixar espaço para arrependimentos. Era um sentimento sem nenhuma utilidade. Já tinha sido mesmo. Podia até sentir vergonha de algumas atitudes do passado, mas arrepender não. A vergonha é um sentimento mais produtivo. E ainda mais se fazemos questão de deixá-lo vivo. Nos mantém longe dos erros anteriormente cometidos. O arrependimento tende a ser tolerante, tende a perdoar os erros e, por isso mesmo, pode nos deixar à vontade para errar novamente. Veja bem, ela pensava, não é que não possamos errar. Mas que sejam erros novos e não repetidos.

No aparelho de som rodava uma música que repetia e repetia. Era de um filme, e trazia ainda mais comoção para aquele momento 'remember'. Na janela queimava um incenso. Sobre o criado mudo, ao lado da cama, uma garrafa de vinho tinto seco e um copo pela metade. Era dia de acertar contas com alguns anos. Algumas coisas precisavam partir. É difícil dar adeus, ainda mais para o que consideramos parte de nós mesmos. Com o tempo vamos incorporando sonhos, fracassos, medos, orgulhos, amores. Sabemos que eles vão nos tornando pesados. Mas ser leve não é tarefa das mais fáceis. O vazio pode ser muito pesado...

Relia poemas que escrevera nas capas de caderno. Relia recados de amigos outrora tão próximos. Fechava os olhos e sentia o cheiro das tardes longas da adolescência. Abria os olhos e os últimos anos desfilavam na sua frente como se fossem pedaços de um filme que foi uma miscelânea de todos os gêneros... Ameaçou amassar alguns papéis. Virou o copo de vinho. Debruçou-se sobre todos aqueles pedaços de vida. De tantas vidas. Sentiu-se grande, como se pudesse abraçar o mundo. Achou um cartãozinho que dizia que ela era bonita. Quis acreditar por um tempo. E conseguiu. Foi até o espelho. Mirou-se demoradamente. Esboçou um sorriso.

Voltou rapidamente para a cama. Colocou cada pedaço em sua respectiva caixinha. Empilhou as caixinhas ao lado da cama. Encheu o copo com o resto do vinho. Fechou os olhos e cantou aquela música com o aparelho de som. Apagou a luz, deixou-se cair na cama. Sentiu-se amparada pelas recordações. Mais uma vez não teve coragem de se desfazer delas. Sentia-se segura. Adormeceu olhando para as estrelas. A música continua tocando. O incenso está quase apagando. Ela dorme, e sorri.

2 comentários:

Unknown disse...

Me elejo esta menina, sentada na cama, tirando pedras de cima de coisas passadas, vivendo com vidas distantes, presentes, estranhas... afinal, o que seria essa mesma vida se não tivesse várias faces? seria pó e jamais magia.

Demais amiga!
Beijos!

Vanna disse...

Tem muito d mim no texto. O q do meu eu foge é q do passado desfis-me das lembranças, menos as q a mente insiste em não se desfazer.
Abraços, abençoada Páscoa.

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