quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Contos da Morte

Estava gelada, como sempre. Caminhava a passos largos. Se alguém a pudesse ver, pensaria que estava muito atrasada. Mas nem era atraso. Estava mesmo era ansiosa. Embora não pudesse mais lembrar a primeira vez que viera buscar alguém, agora sentia uma emoção que talvez se assemelhasse a que sentira em tal ocasião.

O endereço estava no bolso do paletó. Mas nem seria necessário. O lugar era um velho conhecido seu. Estivera na casa de janelas e portas azuis duas vezes no ano passado. Uma no ano retrasado e cinco anos atrás estivera ali, ainda que só de passagem, umas quatro vezes, só no primeiro semestre.

Caminhava rápido. Quase onze e meia da noite. Sabia que Ana estaria acordada ainda. Conhecia já seus hábitos. Desde a primeira vez que lá estivera, Ana na rede da sala, no ir e vir silencioso, ficara gravada em sua memória. Tinha os olhos brilhantes, mas o olhar distante. Não adormecia antes daquele ir e vir. Sabia também de seu desejo de ser encontrada quando já adormecida. Várias vezes ouvira sua voz firme, porém doce e delicada, afirmando que quando chegasse sua hora de partir, preferia estar dormindo. Não tinha medo. E saberia quando tivesse chegado sua hora...

Estava ansiosa por confirmar se Ana a estaria esperando! Na verdade, para ver se ela conseguiria dormir... Pois se ela soubesse mesmo quando tivesse chegado a hora, não imagina que conseguiria adormecer, nem com o ir e vir da rede..

Mas seria um grande encontro! Talvez se olhassem bem nos olhos. Poucas vezes alguém pode olhar dentro de seus olhos. Poucas vezes encontrou alguém que a esperasse sem medo. Nas outras visitas Ana estava sempre acordada.. no seu ir e vir silencioso da rede. Quando foi a vez da mãe de Ana partir, ao entrar na casa, Ana parou o balanço. Olhou para todos os lados da sala. De repente fixou o olhar bem no lado esquerdo da porta do quarto da mãe, onde estive parada por um minuto observando Ana. Seus olhos se encheram de lágrimas. Mas não tinha medo.

Quase não cumpri minha tarefa.. Ela parecia olhar para mim. Parecia me olhar nos olhos. Com aqueles olhos marejados. E de súbito levantou-se e caminhou em minha direção. Abriu a porta do quarto. Parou no lado direito da cama. Olhava para a mãe e olhava para a porta. Parecia me convidar a entrar. Desejei levá-la naquele dia. Mas eu não podia..Coloquei-me diante dela e quando aspirei o último suspiro de sua mãe, quase vi um sorriso entre suas lágrimas.

******

A luz da sala estava baixa. O resto da casa escuro. No pequeno jardim em frente a casa só uma roseira branca parecia sobreviver ao início do inverno. Pegou uma rosa branca...
_Que cheiro de flor! Alguém cortou uma de minhas rosas. Mas a essa hora? Quase meia-noite. A rua estava tão silenciosa.

Estava calma, mas as mãos tremiam levemente e um suor frio brotava delas. Já sentira isso duas vezes no ano passado. E também quando a mãe a deixara. Lembrava de seu desejo, tantas vezes expresso em alta voz: dormindo! É assim que gostaria de embarcar em sua viagem. Embora afirmasse não ter medo, não se atrevia a dizer aquela palavra. E agora sentia que estava chegando a hora. Não sentia sono. Os pensamentos estavam um tanto confusos. O antes e o agora pareciam um só. Recordava-se das outras ocasiões em que estiveram tão próximas. Mas agora seria diferente. De fato estaria frente a frente com ela. Veria sua face? Olharia em seus olhos? Como seriam seus olhos?..

Um arrepio na espinha e o cheiro mais intenso de flor. Ela já estava ali. Não havia dúvidas. Parou o ir e vir da rede. Um rosto pálido em meio a um casaco negro? Não seria tão caricata assim. Talvez fosse uma criança. Talvez um velho. Talvez não tivesse face. Ou todas essas faces juntas.. Ou talvez não tivesse forma alguma. Durante todos esses anos escondera o medo. Disfarçara o pavor em seu desejo de estar dormindo. O sono a privaria desse encontro. No sono e no sonho talvez pudesse recriá-la e inventá-la sob uma forma que não assustasse... Desejava ouvir apenas um sussurro dizendo que havia chegado a hora... Mas agora, começa a sentir consumida pelo medo. A proximidade e a certeza de sua chegada não lhe permitia sequer fechar os olhos, ainda mais dormir. Temia ser transpassada por uma faca muito bem afiada.. Olhava para todos os lados mas recusava-se a enxergar...

*********

Ana não estava pronta. Era isso! Pela primeira vez ela não foi capaz de disfarçar seu medo! Não sorria. As lágrimas tão pouco lhe faziam companhia. Tinha na face o horror estampado. Que decepção! Não seria o grande encontro que havia esperado! Não poderia olha-la nos olhos. Ela jamais a veria! Ana não estava pronta! Era como a maioria dos outros.
Até mesmo ela havia se enganado. Ana fingiu bem. Aquele tempo todo. Foi um jeito de mantê-la longe. De adiar o encontro. Mas não poderia terminar agora...

Ana mal podia respirar. Sentia uma dor estranha. Ouviu vozes murmurando coisas incompreensíveis. Sentiu cheiro da mãe. O cheiro da infância. Das tardes de sol na rua, da casa velha. Sentiu cheiro da merenda da escola. Sentiu o cheiro das paixões que deixou morrer, do amor que nunca permitiu nascer. Teve medo. E chorou. Escondeu o rosto entre as mãos. Sentiu-se pequena. Sentiu-se medíocre. Sentiu-se humana...
Quando levantou a cabeça viu uma flor branca. Uma de suas rosas brancas a seus pés. Entendeu que teria muito tempo ainda até que o grande encontro acontecesse. Não estava preparada. Aquele foi só o começo...

*******

caminhava contrariada. Não tinha mais pressa. Estava chateada. Seria só mais uma noite de trabalho. Logo a sua frente um homem caminhava a passos apressados. Olhava para trás e mais rápido andava. Tropeçou. Caiu. Um sangue escuro escorreu de sua cabeça. Ela se aproximou. Sem nenhum ritual, sem nenhuma emoção. Tomou o último suspiro dele. Não sabia quem era, o que fazia, nada! Continuou caminhando, a noite era longa! a sua então, era eterna...

Nenhum comentário:

Sobre o que se fala

cotidiano Poesia Dicas opinião opiniões política utilidade pública atualidade atualidades Rapidinhas Campinas educação Conto crônica Minas Gerais São Paulo cinema observações Brasil coisas da vida escola Misto música Delfim Moreira divulgação Barão Geraldo Bolsonaro Literatura democracia eleições Filosofia da vida leitura coisas que fazem bem passeios Comilança clã Bolsonaro redes sociais revoltas amigos coronavírus debate público ensino paixão preconceito; atualidades sobre fake news séries Dark Futebol amor coisas de mineiro coisas do mundo internético criança do eu profundo façamos poesia; final de ano; início de ano; cotidiano; pandemia 8 de março Ciência de irmã pra irmã distopia história infância lembranças mulheres política; tecnologia virada cultural Violência; Educação; utilidade pública autoritarismo comunicação consumo consciente desabafo economia fascismo férias impressa manifestação mau humor mentira mágica pós-verdade quarentena racismo estrutural reforma da previdência ser professor (a) sobre a vida música Poesia 15 de outubro 20 de novembro 2021 Anima Mundi EaD Eliane Brum Fora Bolsonaro Itajubá Moro Oscar Passarinho; Poesia; Vida Posto Ipiranga aborto adolescência amizade amor felino animação; assédio sexual autoverdade balbúrdia baleia azul. bolsonarismo cabeça de planilha consciência negra corrupção coti covid-19 crime curta; crônica; curtas; concurso; festival curtas curtas; crônica; da vida; defesa democracia liberal descobrindo o racismo desinformação direitos discurso divulgação; atualidades divulgação; blogs; poesia documentário família filosofia de jardim fim das sacolinhas plásticas frio férias; viagens; da vida; gata guerra de narrativas hipocrisia humor ideologia jornalismo lei de cotas livros minorias morte mídia música Poesia novidades para rir próxima vida racismo institucional rap saudade sentimentos tirinhas universidade utopia verdade verdade factual viagem violência

Amigos do Mineireces