As outras meninas diziam que Anne era inocente demais. Zombavam do romantismo que ela cultivava secretamente. Diziam que para meninas como elas não havia romantismo.
Madame Suzy lhe dava tapinhas na bunda e dizia que com aquele corpo poderia ter os mais caros amantes. Mas de que lhe serviriam aqueles caros amantes? Caros, velhos, tão babões... Todas as noites, já madrugada longa, quando o dia começa dar as caras no céu, Anne toma um banho demorado. Ensaboa todo o corpo, e se esfrega com força, para tirar o resto de todos eles. Repetia aquele ritual acreditando que um dia encontraria um homem que lhe tiraria do Casarão e cujo cheiro ela nunca mais desejaria tirar de seu corpo.
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O rapaz que chegava acompanhado pelo pai, ou tio, ou seja lá quem fosse, era bem vestido e muito jovem. O olhar desesperado e curioso com o qual percorreu o salão foi suficiente para dizer que era a primeira vez dele. Quando era assim, as meninas sabiam que deviam esperar a escolha da
Madame. Logo ela foi conversar com os dois homens. Com um sinal de cabeça chamou Anne. Não era só porque Anne era a mais bela de suas meninas, nem porque era das mais jovens. A
Madame sabia dos romantismos de Anne. Aqueles ares de donzela que ela tinha poderiam deixar o jovem mais à vontade.
Anne o conduziu pelas mãos escada acima. Antes de abrir a porta do quarto o jovem perguntou seu nome. Sabia que devia dizer-lhe aquele com o qual a Madame havia lhe batizado: Bella, mas quando abriu a boca, ouviu sua voz dizendo Anne. Já naquele momento sentiu o coração disparando. Ficou momentaneamente aturdida, sentiu o rosto corando. Rapidamente virou as costas para ele e abriu a porta. A cama estava toda arrumada. Uma colcha branca com bordados vermelhos se estendia até o chão. A meia luz do quarto não permitia ver com detalhes o rosto dele. Ouvia sua respiração acelerada, segurou-lhe novamente as mãos, já agora muito frias e levemente trêmulas.
Quando sentou-se na beira da cama ele disse, de jeito despropositado, como quem quer adiar a ação. Meu nome é Fernando. Anne repetiu o nome baixinho. Sentiu uma ternura repentina por ele e quis confortá-lo em seus braços. Sem dizer nada, foi desabotoando a camisa e acariciando aquele peito jovem. O coração dele fazia mais barulho do que o trem que passava duas quadras do Casarão. Não demorou muito e ele parecia tão à vontade, como se tivesse frequetado aquele quarto desde muito tempo. Ele a despiu como um homem apaixonado e a tocou com toda a experiência que só o desejo concede. Ela se entregou como se fosse a primeira vez...
Exausto, com os olhos brilhando, a cabeça girando, e o coração em chamas, ele disse que voltaria e que ela seria só dele pelo resto dos seus dias.
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Quantos dias tinham se passado desde aquela noite? Por que a demora? Teria desistido?
Outra vez alguém bate na porta, mas dessa vez abre a porta. É a
Madame. Diz, como sempre, que ela está linda, um encanto. Toma as mãos de Anne, que se levanta. Os costumeiros tapinhas na bunda: Querida, tão
Bella, sabes que pode ter os melhores amantes! Vamos, vamos, o salão começa ficar cheio.
Anne atravessa o corredor de quartos. Ouve o alvoroço rotineiro, risos e brincadeiras. Algumas meninas tinham começado cedo a noite. Ao descer a escada sente-se tonta. As luzes e aquela música põem seu estômago em movimentos incontroláveis. Segura firme no corrimão da escada. Fecha os olhos. Respira fundo, é preciso descer. Entre giros e enjoos, chega no canto esquerdo do salão. Várias caras tão conhecidas. Aqueles risos e sorrisos. Olha para todos os lados. Ali, no canto direito, ao lado da porta, parecia ser... Não, foi engano. Esse aparece todas as semanas, e sempre procura Marly. Recém casado, herdeiro de grande fortuna, um dos queridinhos da
Madame. Já disseram até que era filho dela. Que teria sido adotado pelo pai verdadeiro. Homem de grandes posses, financiador do Casarão por muitos anos, primeiro amante da
Madame, quando ainda era Cecília. Mas eram histórias...
Henri serviu o primeiro
drink. Era já uma resposta. O coração apertou e doeu e sentiu-se confusa daquele jeito como quando disse seu nome na porta do quarto. Bebeu de uma vez só. E pediu outro. Carola também se encostou no bar. Acariciou o ombro de Anne e sorriu aquele sorriso de cumplicidade. Carola bem que tentava entender aquele mundo secreto de Anne.
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Passaram-se meses. Ela perdeu a esperança. Jogou aquelas lembranças quase doces em qualquer canto escuro e deu por encerrada aquela quase história de amor.
Mas um dia, quando ela já não mais esperava, quando quase havia desistido de sonhar com o homem que lhe tiraria do Casarão, ele retornou.
Não tinha mais aquele olhar desesperado e curioso, e parecia ter envelhecido em meses uma 6 dúzia de anos.
O reencontro nem de longe fora parecido com qualquer dos muitos devaneios de Anne. Ela não o reconheceu quando ele tocou seu braço.Virou-se como viraria para qualquer cliente, fingindo satisfação por ser requisitada. Ele ficou por um instante mudo e sem reação. Ela se roçou em seu corpo; Deslizou de leve a mão direita sobre seu peito. Mas, quando ele abriu a boca e pronunciou seu nome: Anne. Foi ela quem petrificou. Sentiu-se gelar. Quase perdeu os sentidos. Sussurrou depois de segundos o nome dele sem ainda acreditar.
Subiu a escada apoiada em seu braço. Abriu a porta do quarto e entraram num silêncio que parecia sem fim.
Casado - era tudo que ela ouvira. Tentava se concentrar nas palavras que ele vomitava apressadamente. A mulher doente, quase morrendo. Um amor de infância, uma promessa de família. Mudança, outra cidade, queria levá-la junto, para que fizesse companhia a jovem esposa que em breve iria falecer.
Ela não aguentou. Desmaiou.
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Acordou ainda acreditando não estar de fato desperta. Ele estava ali, sentado ao seu lado, com as mãos no rosto e parecia esconder um choro dolorido. A longa espera que deveria lhe trazer alegria trouxe confusão e amargura. Casado? Não, ela não podia aceitar a proposta de Fernando. Viver sob o mesmo teto que ele sem no entanto poder tê-lo? Por que ele propunha tanto sofrimento? Não seria ela digna de nenhuma consideração por parte dele? Sabia bem qual era seu lugar aos olhos da sociedade. Mas assim, sob o mesmo teto? Junto de uma esposa enferma? Era demasiada humilhante tal proposta.
Ele tentava se explicar, justificar sua decisão atropelada e a proposta agora feita a ela. Mas não havia meios de convencê-la a acompanhá-lo. Além do mais, quando a jovem esposa morreria? E se não morresse? Como ela ficaria? Ao mesmo tempo que ousava formular tais perguntas, Anne se sentia já profundamente culpada por desejar a morte de alguém que nem mesmo conhecia.
Depois de uma longa espera, nem um beijo. E a despedida foi breve, sem esperança para ambos naquele momento. Mas Fernando disse que não desistiria dela. Que voltaria, assim que estivesse livre, voltaria para buscá-la.
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Anne não teve forças para descer aquela noite e nem nas noites seguintes. Sob protestos e ameaças da Madame ela apenas calava e definhava dia após dia. Uma febre terrível apossou-se dela e dia e noite em delírio doloroso ela chamava por Fernando.
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A liberdade de Fernando estava condicionada a morte de Clarice. Também ele sofria dia após dia. Sofria sentindo-se o pior dos seres humanos. A jovem esposa, a quem ele jamais quis mal, ao contrário, quando crianças eram tão queridos um do outro, passavam muitas horas juntos, milagrosamente parecia diariamente se agarrar mais forte a frágil vida que lhe restava. Ele, que não podia lhe desejar mal, também não podia se alegrar com aquela repentina demonstração de melhora. Casará-se apenas por ser este o desejo da jovem amiga de infância - era assim que ele a via - e que fora condenada pelos médicos. Casou-se por pena, era essa a verdade. E qual não era seu arrependimento agora. E se ela de fato se recuperasse? Teria coragem de deixá-la para buscar sua própria felicidade? Quanto tempo Anne o esperaria? Não faria a Clarice mal maior agora, deixando-a? Seria ela, ainda que recuperada, capaz de suportar tal golpe? O que tinha feito de sua vida?
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A carta da Madame o pegou de surpresa. Seus dias de angustia haviam chegado a um ponto insuportável. Não conseguia esconder de ninguém, nem mesmo da pobre Clarice, o quão consternado sua recuperação o deixava. Ela, que pensava ser correspondida em seu afeto verdadeiro por ele, não conseguia entender aquela tristeza em seus olhos. Quanto mais ela melhorava, quanto mais forte ficava, mais decido ele estava a contar-lhe toda a verdade e colocar um ponto final naquela história que não devia ter começado.
Mas eis que a carta de Madame Suzy lhe chega às mãos. Ele, entre angustiado e esperançoso - teria Anne mudado de ideia? - abre o envelope e começa a devorar as letras bem feitas da Madame. Mas a cada palavra sua face se contorcia em profundo desespero. Lia, relia, não podia acreditar. Morte? Anne, morta? Não, seria uma mentira. Ela teria ido embora com algum cliente e não o desejava ver nunca mais. Não, morta não podia ser. E de tristeza? Clarice, não Anne fora desenganada pelos médicos. Clarice, não Anne devia morrer!
Não, como ele era capaz de pensar tal coisa? Pobre Clarice, não era sua culpa. Se alguém tinha culpa, esse alguém era ele, Fernando. Foi fraco ao se render àquele sentimento de pena. Foi fraco ao procurar Anne e fazer-lhe aquela proposta tão humilhante. Ele era o culpado pela tristeza de Anne, pela morte de Anne. Devia pagar por tudo isso.
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Ainda com a carta da Madame nas mãos, Fernando dirigiu-se à biblioteca. Numa das gavetas da mesa pegou uma caixa de madeira e de lá um revolver. Sem pensar, movido pela paixão que o consumia, como parecia ter sido todos os atos que culminaram naquele momento - a promessa à Anne naquela primeira noite, o casamento com Clarice, a volta ao Cabaret e a proposta feita a Anne - atirou em sua própria cabeça.
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