A palavra democracia é de origem grega, como muitas outras do vocabulário político, e significa poder (cracia de cratos) do povo (demo). Em Atenas, originalmente, o povo era cerca de 10% da população, pois apenas homens, livres, maiores de idade, filhos de pais atenienses, compunham o povo. Mulheres, escravos, estrangeiros formavam um contingente de excluídos da vida política. O conceito de povo foi mudando ao longo do tempo, felizmente. Dizemos que o conceito de cidadão se ampliou.
Para termos uma democracia é preciso que haja isonomia, igualdade de todos perante a lei (mesmos direitos e mesmos deveres) e isegoria, direito igual à palavra. Daí sempre falarmos da liberdade de expressão como principal marca de um regime democrático. Se todos têm direito a fala, todos também têm o dever de ouvir, é dessa interação que nasce o diálogo. Sem diálogo é impossível ter um ambiente democrático. No entanto, ouvir o outro é muito difícil, exige uma boa dose de paciência e tolerância, pois nem tudo que vamos ouvir vai nos agradar. Numa democracia embate de ideias é indispensável para que se possa concretizar o exercício ou prática democráticos. Falar e esperar que todos concordem combina muito mais com regimes autoritários. Num ambiente democrático, teremos que usar a palavra para defender nossas ideias ou visões de mundo. O convencimento deve se dar pela apresentação de argumentos consistentes. Quem espera vencer no grito ou pelo silenciamento do outro não sabe conviver com a democracia.
A sociedade brasileira tem uma experiência recente com a democracia. Ainda estamos dando nossos primeiros passos. Acreditava-se há poucos anos atrás que estávamos avançando, no entanto, os acontecimentos recentes têm nos mostrado que esse processo era bem mais frágil do que pensávamos. Não fomos educados para viver num ambiente democrático. Não fomos estimulados a exercitar a democracia. Por muito tempo a eleição, a escolha de representantes políticos, foi saudada pela mídia e pela sociedade como a Festa da democracia, como o grande momento de participação política do cidadão brasileiro. Talvez esse tenha sido um dos nossos maiores erros. O modelo representativo das democracias modernas levou muitos países a se distanciarem da democracia. No caso do Brasil, a ideia de que existem 'os políticos' e a eles cabe a responsabilidade por 'fazer política' nos deixou às margens de processos que agora são desmascarados diante dos nossos olhos e que nada têm de democráticos.
No nosso país, quando os cidadãos resolvem participar da política, quando resolvem tomar parte 'na festa democrática' para além do voto, facilmente isso vira sinônimo de 'rebeldia', 'bandidagem', 'baderna', 'vandalismo'. Na educação não é diferente. Quando os alunos de escolas públicas ocuparam escolas e reivindicaram ser ouvidos, foram logo tachados de 'vagabundos', 'invasores'. 'Os políticos' têm medo de cidadão querendo participar da política. Os cidadãos só são bem vindos nas eleições. Que votem e voltem para casa. E se quem se mete a fazer política são jovens, aprendendo o que é ser cidadão, o perigo é muito maior e é preciso declarar guerra contra ele. Mas fazer guerra contra adolescentes pega mal, até para uma Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Nesse episódio, o secretário de educação não teve condições de continuar no cargo. E toda essa confusão teve início porque a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo tem um modus operandi nada democrático: do dia para a noite foi anunciada uma reorganização das escolas estaduais que pegou todos de surpresa. O resultado dessa falta de diálogo entre Secretaria de Educação e as comunidades escolares foi sentido pelo governador Geraldo Alckmin que resolveu dar um passo atrás, ou melhor, resolveu fingir que iria dar um passo atrás.
O novo secretário de Educação, José Renato Nalini é um fanfarrão, para dizer o mínimo. A última novidade da Secretaria de Educação é implementar uma tal de Gestão Democrática nas escolas da rede, de maneira nem um pouco democrática, diga-se de passagem, afinal, veio tudo já prontinho (questionários, modelos de fichas de sugestões, dinâmicas a serem realizadas), só para ser aplicado nas escolas, e com data marcada para que sejam enviados os relatórios para a Secretaria. O projeto de democratização começou pelos Grêmios Estudantis. É claro que, de maneira bem democrática, quem decidi o que são bons Grêmios e o que seria um Grêmio baderneiro é a Secretaria de Educação... Resumo da história: os Grêmios foram colocados nos trilhos da Secretaria de Educação, ou pelo menos é o que vem tentando a rede estadual, com cursos de formação de professores para acompanhar os Grêmios, entre outras medidas.
O debate sobre gestão democrática teria como foco a atuação das instâncias deliberativas das escolas, APM (Associação de Pais e Mestres), Conselho de Escola e Grêmio Estudantil. Pais, alunos, professores e funcionários podem e devem participar dessas instâncias e elas deveriam servir para tomar decisões referentes às necessidades das escolas. O discurso é bonito, mas na prática é tudo bem diferente. Para começo de conversa, a autonomia que as UEs (unidades escolares) têm hoje é quase nula. Em termos financeiros, a grande maioria das verbas já vêm com destino certo (elas vêm para comprar produto de limpeza, ou para comprar determinados materiais de uso cotidiano, etc). Contratação de professor, atribuição de aula, é tudo decidido pela Secretaria de Educação, não dando margem para as UEs resolverem problemas locais de maneira rápida e eficiente. Tudo é muito burocratizado. As decisões que essas instâncias podem tomar são bem restritas. Por outro lado, cada vez mais o Estado tende a incentivar o trabalho voluntário de pais e membros da comunidade de modo a suprir as faltas do poder público. O discurso de que a comunidade deve se envolver com a escola é bonito e faz sentido, mas não pode servir de desculpas para que o Estado cada vez mais faça menos.
Como disse uma colega, apesar de todas as críticas que temos e devemos fazer à maneira como o Projeto Gestão Democrática está sendo jogado pra cima das escolas, temos nas mãos uma chance única de usar esse espaço de debate para pensarmos 'que escola queremos'. Não vai ser fácil. Tem escola apenas preenchendo os relatórios, ou seja, cumprindo com a burocracia, fornecendo 'dados' para a Secretaria (e talvez seja só isso mesmo que eles querem...), mas tem escola que está encarando o desafio de chamar todos, professores, funcionários, pais e alunos para construir uma escola mais democrática. Os conflitos vão surgir, as dificuldades de escutar coisas que não nos agradam serão imensas, haverá confronto, mas pode trazer frutos bem positivos. Numa dessas reuniões de debate sobre Gestão Democrática, apesar de todos os percalços que tivemos, surgiu uma ideia muito legal: Assembleia Geral na Unidade Escolar. Essa ideia veio dos professores, veio dos alunos e dos funcionários. Todos sentem a falta de mais diálogo, a necessidade de se criar espaços para que todos esses agentes possam interagir, falar e se ouvir sobre qual é a escola pública que queremos. Apesar dos problemas que sugiram durante a reunião, problemas que, na minha avaliação decorrem justamente da nossa experiência limitada com ambientes verdadeiramente democráticos, as atuações e reações dos alunos foram tão positivas, que saí com uma pontinha de esperança de que podemos ter avanços e construir uma espaço de fato democrático nas escolas públicas.
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