"-Vinte anos de Polícia Federal, deu pra comprar um carro usado para minha esposa e um sítio no interior do Paraná." Delegado Rufo, O Mecanismo.
Essa afirmação é feita duas vezes no primeiro episódio da série de José Padilha que estreou na Netflix semana passada. As cenas da casa do tal delegado e do apartamento de sua colega, Verena, seguem o mesmo tom: "como ganham mal os delegados da Polícia Federal". Quantos ficarão convencidos desse mimimi?? Ou será que a série é destinada aos que já estão convencidos de que os pobres delegados da PF são uns injustiçados, que ganham mal, que vivem uma vida mediana, sofrendo para pagar as contas?
Uma rápida investigação no google nos mostra que, em 2003, ano em que a cena dO Mecanismo está situada, o salário inicial de um delegado da polícia federal estava na casa dos R$ 7.500,00. Só para fins de comparação, no mesmo ano, o salário mínimo era de R$ 240,00.
Hoje, expectativa de concurso para delegado da polícia federal prevê salário inicial na casa dos R$ 22.000,00 (o salário mínimo está em R$954,00).
É claro que tem gente ganha muito mais do que um delegado da Polícia Federal, um Juiz Federal*, por exemplo, mas também os deputados**, os senadores***. No entanto, nem de longe dá para falar que esses servidores públicos ganham pouco. Com esse salário, eles fazem parte de um grupo bem restrito nesse país que compõem uma elite. É um tanto ridícula, para dizer o mínimo, essa fala dramática do delegado Rufo no capítulo de abertura da série.
Vale a pena entrar na página do Nexo Jornal e fazer o teste para ver qual a situação de um delegado da PF morando no Paraná, com salário de R$ 22.000,00 (salário inicial). Faça o teste, veja quão pobre é um delegado da PF. Só para ficarmos com um exemplo, os professores da rede estadual do Paraná, em regime de 40horas, ganham menos de R$ 2.298,80, que é o piso federal que não está sendo respeitado em muitas cidades do Estado.
Enfim, vi apenas o primeiro capítulo, devo assistir os outros para desencargo de consciência. Mas o primeiro episódio, aparentemente, dá o tom da série: senso comum levado às telas do streaming - todos os políticos são corruptos; a Polícia é a salvação do Brasil. Não me parece que essa linha argumentativa tenha muito a contribuir com o atual cenário. Fica a sensação de que a solução para o país é ser governado por algum policial incorruptível...Ou estamos diante de uma visão muito limitada da realidade do país ou de pura má fé...
A qualidade técnica de José Padilha não está em questão, ele já provou ser capaz de conduzir com bastante sucesso outros trabalhos. Ainda que antes de iniciar a série sejamos avisados de que se trata de uma obra de ficção, livremente inspirada em fatos reais, em tempos de fake news e de pouco apreço pelos fatos, a chance dessa obra de ficção ser tomada como relato fidedigno dos fatos me parece grande. Também me preocupa a liberdade que os envolvidos na série possam se dar, em nome da ficção, de alterar os fatos. Entendo como parte da ficção criar um personagem, como o delegado Marco Rufo, mas isso é bem diferente de colocar pessoas em locais estratégicos para uma determinada versão da história. Enfim, eu só vi o primeiro capítulo por enquanto...
*O juiz Sergio Moro, por exemplo, segundo o site de Transparência do Judiciário, recebeu em janeiro de 2018, R$ 34.007,17 líquido (sendo o valor bruto de R$ 53.498,31); Detalhe importante, rendimento de Moro está acima do teto constitucional que é de R$ 33.700,00.
**um deputado federal, hoje recebe R$ 33.763,00 (bruto).
***Renan Calheiros, por exemplo, recebeu no mês de fevereiro, R$33.750,40 (bruto) e líquido R$ 27.333,19.
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