“Se eu for para a cidade eu morro logo, a minha natureza é trabalhar na terra. Quem é nascido e criado na roça não serve para a cidade não”.
A afirmação acima poderia bem estar na boca de algum dos personagens de Torto Arado, mas é de um dos moradores do Quilombo Campo Grande, na cidade de Campo do Meio em Minas Gerais. Nos últimos dias, mais de 450 famílias vem sofrendo com a ação violenta da PM de MG, do governador do Novo, Romeu Zema, a fim de cumprir ação de reintegração de posse da área da antiga Usina Ariadnópolis, que faliu em 1996 sem pagar os direitos trabalhistas de seus funcionários. Segundo reportagem do Repórter Brasil, de novembro de 2018, há ainda uma dívida de quase R$ 400 milhões com a União, referentes a contribuições previdenciárias, FGTS e impostos federais, que foi negociada e parcelada por meio do Refis, programa do governo que facilita o refinanciamento de dívidas.
O empresário Jovane de Souza Moreira é quem pede o despejo das famílias. Segundo o advogado do empresário, o Jovane é um sujeito religioso, frequentador da Igreja Congregação Cristã no Brasil, que dá uma cesta-básica para algumas pessoas e faz trabalho voluntário em Alfenas. Já o filho, Jovane de Souza Moreira Junior, menos discreto que o pai, é apoiador de Bolsonaro e foi coordenador de campanha de Marcelo Álvaro Antonio - aquele do laranjal do PSL mineiro, atual ministro do turismo, defensor da regularização de cassinos no Brasil, conforme revelado na reunião ministerial de 22 de abril. E, segundo a página do Facebook de Jovane de Souza Moreira Junior, ele é hoje pré-candidato a prefeito de Alfenas, pelo Avante.
Segundo a matéria do Repórter Brasil, "o principal argumento da família de Jovane para o pedido de urgência de despejo das famílias da área é um contrato firmado há dois anos com a empresa Jodil Agropecuária e Participações Ltda., cujo proprietário é João Faria da Silva, que já foi chamado de “maior produtor e exportador individual de café do país” por publicações especializadas. Entre os principais compradores dos produtos do empresário estão a Nestlé e a holandesa Jacobs Douwe Egberts (JDE), dona das marcas Pilão, Café do Ponto, Cacique, Café Pelé e Damasco. A JDE afirma que “não está comprando” café da marca Terra Forte, de João Faria."
Boicote às marcas que compram grãos do João Faria da Silva - Terra Forte - iria bem, em tempos de ativismo digital. Afinal, "maior produtor e exportador individual de café do país" está patrocinando a ação de despejo das mais de 450 famílias. Por outro lado, também iria bem, em tempos de ativismo digital, a divulgação da produção das famílias do Quilombo Campo Grande. Uma delas é o
Café Guaií, produção orgânica e agroecológica. Segundo informações do site de divulgação do café: "a produção orgânica de café em nossas áreas já é uma realidade, graças as parcerias com a Professora Leda do
Instituto Federal do Sul de Minas e a
Christian Aid,
muitas famílias vem aprendendo na condução das lavouras orgânicas e,
para romper com o uso de adubos de síntese química e produzir
agroecologicamente hoje, a cooperativa organiza a compra de
micronutrientes para o preparo de caldas naturais, e a compra de adubos
orgânicos como torta de leguminosa, farinha de osso, composto orgânico,
fosfato natural, potássio natural e esterco de gado para aplicação nas
lavouras e produção de adubos vivos como o Bokashi e, além de viabilizar
o retorno da palha do café da agroindústria para a lavoura."
Além da ação truculenta da PM-MG - jogaram bomba de gás, atearam fogo no mato seco ao
redor, usaram helicóptero para jogar para cima das
pessoas, levantar poeira, voando baixo para assustar, segundo relato de assessora de comunicação do movimento à
Agência Brasil -, a reintegração se dá durante uma pandemia. Conforme também noticiou a Agência Brasil, "a Defensoria Pública de Minas Gerais avalia que a execução da ordem de
reintegração de posse durante a pandemia colocou em risco os moradores
do acampamento. “Fizemos todos os esforços para tentar suspender essa
operação. Não é possível considerar, do ponto de vista até
constitucional, com o princípio da dignidade humana, que, em um tempo
dessa natureza, com mais de 100 mil mortos pela covid-19, uma crise
sanitária de alta gravidade, seja realmente sensato fazer uma operação
policial dessa natureza”, disse a defensora pública Ana Cláudia
Alexandre Storch, da Defensoria Especializada em Direitos Humanos,
Coletivos e Socioambientais. Segundo ela, é “inconcebível” imaginar que
tenha havido urgência que justificasse a ação."
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Imagem de Gean Gomes-MST - no site do MST
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O caso do Quilombo Campo Grande é só mais um exemplo da realidade retratada por Itamar Vieira Junior em Torto Arado. Seja no sertão da Bahia ou no Sul de Minas Gerais, a questão da terra permanece uma chaga aberta no Brasil. Enquanto o valor social da terra não for maior do que os interesses econômicos, enquanto a indecente exploração de centenas e milhares de trabalhadores rurais for tolerada em nome do lucro de meia dúzia de famílias, esse país está condenado e seguir sendo esse retrato da desigualdade, da violência e da desesperança. Se a dívida de 400 milhões com a União não é motivo para desapropriar essas terras e entregá-las àqueles que hoje as tornam produtivas, tiram delas seu sustento e, portanto, delas vivem, me pergunto o que seria.
Todo apoio às famílias do Quilombo Campo Grande. Enquanto a injustiça nesse país não for vencida, Severos e Zezés precisam continuar fazendo as perguntas incômodas:
"Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre. Por que a família Souza Moreira, que não morava na fazenda, era dita dona. Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão. Se dai retirávamos nosso sustento." (Junior, Itamar Vieira, Torto Arado, com adaptação minha).
Um comentário:
Como sempre, mais um ótimo texto! Muito triste pensar que o lucro está acima da vida. Triste pensar que dezemas, centenas, milhares de pessoas, já tão castigadas pelas injustiças desse país, ainda tenham que passar por uma situação como essa, de pura crueldade e violência num momento já tão doloroso.
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