quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Dica de leitura: A morte e o meteoro (Joca Reiners Terron)

"O epílogo estava escrito, só que ninguém mais sabia ler. A história nos trouxe a esse ponto cego e, como em toda situação parecida, a culpa devia ser endereçada à espécie humana, ou ao menos àquela parte que ainda merecia ser identificada por qualificação tão flexível: aos humanos humanitários, por assim dizer, ou aos melancólicos que sobreviveram ao cinismo" (A morte e o meteoro, p. 13)

"No início do século 20, o povo Juma contava com uma população de cerca de 15 mil pessoas. Atingido por doenças e sucessivos massacres, a nação foi sendo dizimada. Segundo o OPI, o último massacre aconteceu em 1964, quando 60 indígenas foram assassinados a mando de comerciantes do município de Tapauá (AM), interessados na sorva e castanha disponível em seu território." (Nexo Jornal, Quais as nações indígenas sob risco de extermínio no Brasil - Último homem guerreiro Juma morreu de covid em Rondônia no dia 19 de fevereiro de 2021.)

Ler A morte e o meteoro, de Joca Reiners Terron, na semana em que o último guerreiro Juma morreu de Covid em Rondônia, fez com que a leitura fosse ainda mais perturbadora. Esse livro foi um presente da amiga @fabigaton. Aliás mais uma indicação incrível da Fabi que também me presenteou com Torto Arado. E se minha memória não me engana, perturbador foi a palavra que a Fabi na época usou para classificar A morte e o meteoro.

É um livro curtinho (116 páginas), mas muito denso. Ao iniciar a leitura, tive um estranhamento com o estilo, precisei voltar a leitura umas duas vezes até encontrar o ritmo. E aí não conseguia parar mais. A narrativa é angustiante, em alguns momentos me fez sentir sufocada, o ambiente é desalentador, e as experiências de luto que permeiam a história nos lembram da nossa condição de fragilidade, dos riscos que corremos, da nossa morte iminente, não só como indivíduos, mas como espécie. 

"Não passavam de cinquenta kaajapukugi, últimos sobreviventes de seu povo, suas últimas cinquenta cabeças postas a prêmio. Fui encarregado do caso pelo secretário federal de imigração, um imbecil indicado ao cargo pelo Partido Revolucionário Institucional. O fato de ter me colocado à frente disso deve ter sido o lampejo final da monótona vida sináptica daquele desprivilegiado pelos neurônios, uma última e desesperada justificativa de sua existência inútil" (p.11).

Somos introduzidos à história dos kaajapukugi por um burocrata da Comissão Nacional para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da cidade de Oaxaca, no México. Um antropólogo interessado por línguas mortas cujo trabalho, em suas próprias palavras, "consistiu quase inteiramente  em despachar  ônibus decrépitos com trabalhadores rurais à zona agrícola, ou com menor ou maior frequência, preencher certidões de nascimento e óbito a granel". Um homem solitário que vivia o luto da morte recente dos pais e que carecia de algo que desse sentido àquela sua vida monótona e medíocre. Mas a narrativa é dividia com Boaventura, uma espécie de "antropólogo prático", que embora nunca tenha frequentado uma faculdade de antropologia, dedicou sua vida, desde muito cedo, a investigação de povos indígenas. No entanto, o que pode parecer, à primeira vista, uma vida dedicada a causa indígena, traz à tona ambiguidades, contradições e facetas obscuras tão típicas do ser humano. 

"terei que voltar ao passado, aos meus trinta anos de idade, e lembrar fatos que preferia ter esquecido, coisas que deviam ficar enterrada no solo arenoso das margens dos igarapés do Purus. Resta saber como esquecer algumas verdades. Impossível, a não ser que sejam varridas por um acidente vascular ou pelo Alzheimer. Não é o meu caso, pelo menos ainda não" (A morte e meteoro, p.40).

Em comum, Boaventura e o antropólogo mexicano têm o luto recente dos pais logo antes do acontecimento de fatos que irão mudar suas vidas para sempre. A morte dos seus ancestrais mais próximos, a perda de suas raízes, o sentimento de solidão e falta de pertencimento são, portanto, a tônica da narrativa. E nos leva a nos perguntar qual será o futuro da humanidade, o nosso futuro? Sem nossos "ancestrais", mas também sem possibilidade de herdeiros, de novas gerações (Boaventura e o antropólogo são homens solitários, assim como os 50 sobreviventes dos kaajapukugi, todos homens). Seria o fim da "aventura humana na terra"? 

O tom distópico (ou seria realista?) se cruza com um tom de ficção científica. A narrativa é envolvente e nos lança numa viagem pelo tempo e pelo espaço, uma oportunidade de enfrentarmos as consequências da nossa tolerância centenária com abusos e violências indescritíveis aos povos nativos - sejam esses abusos e violências cometidos por colonizadores, autoridades políticas, figuras como Boaventura ou ainda por madeireiros, grileiros e outros tipos de gananciosos que olham para a floresta, para a natureza, como mercadoria, como tem denunciado há tanto tempo Ailton Krenak e tantos outros líderes indígenas:

"Quando nós falamos que o nosso rio é sagrado, as pessoas dizem: "Isso é algum folclore deles" (...). Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos  deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista. Do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos" (Ideias para adiar o fim do mundo, p.49).

Órfãos, como Boaventura, como o antropólogo mexicano, órfãos como os 50 remanescentes dos kaajapukugi. Parece que depois de anos de genocídio, de violência, de exploração, somos nós, os não índios, os que se encontram em perigo de extinção. No Brasil de 2021, de Bolsonaro e Salles, somos desgovernados por "imbecis", "desprovidos de neurônios" e que transpiram ódio e ganância. Ou seja, estamos acelerando o nosso fim. Ainda haveria possibilidade de salvação para nós? Ainda há chances de salvação para a Amazônia? Ainda temos tempo para adiar o fim do mundo? O nosso fim? 

Difícil não nos sentir na iminente condição de refugiados políticos, refugiados climáticos, num Brasil cujo dia a dia consegue ter cores tão distópicas que só mesmo a ficção para nos ajudar a encará-lo. A morte e o meteoro não é exatamente um livro otimista, mas, como todo bom livro, nos provoca a imaginar outros futuros, outros mundos possíveis, apesar do luto que por ora permeia nossas vidas. 



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