sexta-feira, 29 de novembro de 2019

A verdade de Bolsonaro e o fim da política

"Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará" - o jargão de Bolsonaro, a única coisa que ele leu na Bíblia. Se é que ele leu. É mais provável que tenha ouvido de alguém, de algum dos seus amigos pseudo-cristãos ou cristãos-fakes.  Mas que 'verdade' seria essa? A 'verdade' do texto bíblico teria algo a acrescentar ao debate político? Quando Bolsonaro recorre ao versículo de João para acusar a imprensa de mentir, que 'verdade' exatamente ele quer que a imprensa anuncie? 

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Alguém poderia pensar: uai, verdade é verdade, o presidente está só exigindo que a imprensa (a Folha de São Paulo, para ser mais específico) fale a verdade. Mas não é tão simples assim. Um conceito como o de verdade é bastante complexo, pode ter diferentes sentidos e aplicações. 

Quando um profeta ou um religioso diz que tem a verdade, ele acredita ter recebido essa verdade de alguma divindade ou ser superior, que normalmente está fora do mundo. Ele acredita ter falado com essa divindade pessoalmente ou ter sido inspirado por ela, ou ter recebido uma mensagem de um anjo ou de uma voz misteriosa vinda do além. A verdade da Bíblia e todas as outras verdades que estão associadas a alguma religião costumam ter o caráter de verdade revelada. Ou seja, ela é revelada por algum ser superior (deus, espírito, anjo, santo, demônio, etc). Quando aquele que teve acesso a tal verdade a anuncia, ele espera que aqueles que o escutam acreditem na sua palavra, no seu testemunho, e também acreditem na origem divina da mensagem que ele traz. Ou seja, não há como comprovar essa verdade, ela é objeto de fé. Quando um matemático afirma que 'é verdade que dois mais dois são quatro', estamos diante de uma verdade racional. Também as verdades filosóficas e científicas em geral poderiam ser enquadradas nessa categoria e seriam resultado da mente humana. Portanto, diferente das verdades reveladas, que estariam prontas em algum lugar e seriam apresentadas ao homem por meio de uma divindade, a verdade racional seria construída pela mente humana. Por fim, quando dizemos que em 1º de abril de 1964 houve um golpe militar no Brasil, estamos lidando com uma verdade factual. Segundo Eugênio Bucci, 

"a verdade factual é um buraco no meio da rua, uma criança sentada num banco de escola, a dor no joelho, a fome que devora a esperança das famílias sem dinheiro, a alegria de pessoas que se amam andando de mãos dadas num parque público ensolarado. A verdade factual é aquilo que conforma a realidade sensível e sobre a qual não pairam dúvidas práticas." (BUCCI, 2019, p.85).

A verdade revelada é imutável e independe de qualquer ocorrência no mundo, uma vez que sua origem não é esse mundo. Portanto, ela se impõe de cima para baixo, de fora para dentro, pelo mistério ou pela autoridade. A verdade racional, por ser uma construção da mente, também se impõe para todo aquele que estiver disposto a seguir os caminhos da razão. Já a verdade factual parece, num primeiro momento, não gozar da mesma força coerciva dos demais tipos de verdade, pois ela depende dos fatos, e os fatos são contingentes, acidentais, poderiam ser de infinitas outras maneiras, ou simplesmente não ser. No entanto, uma vez que este fato ocorreu, sua verdade factual torna-se imperativa e só mesmo a mentira tem força para fazer frente a ela. Segundo a filósofa Hannah Arendt, 

"Asserções como "Os três ângulos de um triângulo são iguais aos dois ângulos de um quadrado", "A terra move-se em torno do sol", "É melhor sofrer o mal do que praticar o mal", "Em agosto de 1919 a Alemanha invadiu a Bélgica" diferem muito na maneira como se chegou a elas, porém, uma vez percebidas como verdadeiras e declaradas como tal, elas possuem em comum o fato de estarem além de acordo, disputa, opinião ou consentimento. Para aqueles que as aceitaram, elas não são alteradas por multidões ou pela ausência de multidões que acolham a mesma proposição; a persuasão ou dissuasão é inútil, pois o conteúdo da asserção não é de natureza persuasiva, mas sim coerciva (ARENDT, 2016, p.297).

Essa característica da verdade estaria na origem do conflito antiquíssimo entre verdade e política, ou talvez, de maneira mais precisa, do conflito entre verdade e políticos. Os políticos, aqueles que estão em posição de poder, e mais ainda os políticos com tendências autoritárias, sempre se sentiram ameaçados pelo caráter despótico da verdade. De acordo com Arendt,

"Ela é, portanto, odiada por tiranos, que temem com razão a competição de uma força coerciva que não podem monopolizar, e desfruta de um estado um tanto precário aos olhos de governos que se assentam sobre o consentimento e abominam coerção" (ARENDT, 2016, p.298). 

Bolsonaro é um político, embora tenha sido eleito com o discurso da antipolítica. Ele não é um líder religioso, nem um cientista, nem filósofo, é um político. E o tecido da política são os fatos. É a verdade factual que encorpa a política. Mas em onze meses de governo, Bolsonaro, que nunca teve apreço pela democracia, tem deixado patente seu desprezo pelos fatos e seus ímpetos autoritários. Portanto, ele faz parte do grupo de políticos que, segundo Arendt, odeia a verdade. 

Agora volto às minhas perguntas iniciais e as reformulo: Quando Bolsonaro insiste no versículo bíblico, "conhecereis a verdade e a verdade vos libertará", a que verdade ele se refere? À verdade factual? À verdade racional? Ou seria à verdade revelada? Uma primeira hipótese é que a verdade de Bolsonaro seria uma espécie de verdade revelada, tal qual aquela da Bíblia. Assim como lemos na Bíblia que "Jesus é o caminho, a verdade e a vida", Bolsonaro parece pretender se apresentar como a verdade. A verdade de Bolsonaro, anunciada por ele mesmo, não admite provas, não pode ser verificada, ela se impõe pela autoridade, do cargo ou de Deus - com quem Bolsonaro parece acreditar ter uma relação muito direta. Essa hipótese ganha força quando encontramos ao lado de Bolsonaro cristãos-fakes dispostos a transformar Messias, o Jair, em um enviado de Deus e assim em ungi-lo diante das massas de fiéis. 

Mas pode ser que a verdade de Bolsonaro seja só mesmo uma mentira. Nesse caso, para entender a insistência de Jair com o versículo de João, é preciso recorrer à literatura. Com 1984 aprendemos que guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força. Cada vez que Bolsonaro recorre à verdade,  ele nos oferece em seu lugar uma mentira. Assim, poderíamos acrescentar à lista de 1984 que mentira é verdade.

Bolsonaro ao dizer "conhecereis a verdade e a verdade vos libertará" pretende que a sua verdade nos liberte do quê? Do comunismo petista que domina inclusive a imprensa internacional? Da ideologia de gênero que quer transformar todas as crianças em gay? Do globalismo? Do politicamente correto? Da ditadura gay que nos oprime? Cada uma dessas ameaças não passam de pedaços de uma super teoria da conspiração que hoje dita os rumos da política no Brasil. Para entender melhor como essa super teoria da conspiração está atuando no cenário brasileiro recomendo a leitura de Tudo o que você precisou desaprender para virar um idiota, do Meteoro Brasil

O que me interessa aqui é mostrar que a verdade de Bolsonaro não passa de uma verdade-fake. Ou seja, Bolsonaro nos conta mentiras, afirma que estamos ameaçados por uma dúzia de espantalhos criados justamente para causar pânico. Ele - mas não só, há minions pela internet, cristãos-fakes, filósofos-fakes, jornalistas-fakes - convenceu uma boa parte dos brasileiros - e outra parte fez de conta que estava convencida porque tinha outros interesses - de que todas aquelas teorias conspiratórias eram verdade. Ou seja, a mentira virou verdade. Depois ele disse que era preciso mudar tudo isso que estava aí. 

Mas a verdade de Bolsonaro é fake. E cada vez que suas mentiras são denunciadas, ele ataca e grita que só a verdade poderá nos libertar. Ele ameaça, boicota, censura. Mas diz que o resultado de tudo isso é mais democracia. Bolsonaro é perverso, como já explicou Eliane Brum. Foi ela também que nos explicou que Bolsonaro opera com a autoverdade, "algo que pode ser entendido como a valorização de uma verdade pessoal e autoproclamada, uma verdade do indivíduo, uma verdade determinada pelo “dizer tudo” da internet" (BRUM, El país,  julho de 2018). Esse 'dizer tudo' é performático e pretende criar uma nova realidade. Hannah Arendt já havia chamado a atenção para o fato de que o mentiroso é um sujeito de ação. O mentiroso deseja mudar a realidade. Mentirosos como Bolsonaro, e sua inspiração estadunidense, criam seus próprios fatos, fatos alternativos, como chegou a declarar uma conselheira da Casa Branca. 

O perigo de tudo isso é que, sem os fatos, não é possível a política. Sem os fatos e a verdade factual nos restam os caprichos dos tiranos. Como disse Bucci, "a política sem fatos é um delírio apolítico ou antipolítico, uma guerra entre convicções desprovida de verdade" (BUCCI, 2019, p.83). 

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ARENDT, Hannah, Verdade e política, in Entre o passado e o futuro, São Paulo: Perspectiva, 2016.
BRUM, Eliane, Cem dias sob o domínio dos perversos, in El País Brasil, disponível em: https://epoca.globo.com/politica/eugenio-bucci/noticia/2017/01/o-adeus-aos-fatos-e-o-totalitarismo.html. 
BRUM, Eliane, Bolsonaro e a autoverdade, in El País Brasil, disponível em:https://epoca.globo.com/politica/eugenio-bucci/noticia/2017/01/o-adeus-aos-fatos-e-o-totalitarismo.html.
BUCCI, Eugênio, Existe democracia sem verdade factual?, Barueri,SP: Estação das Letras e Cores, 2019.
BUCCI, Eugênio,  O adeus aos fatos e o totalitarismo, in Revista Época, disponível em: https://epoca.globo.com/politica/eugenio-bucci/noticia/2017/01/o-adeus-aos-fatos-e-o-totalitarismo.html.
METEORO BRASIL, Tudo o que você precisou desaprender para virar um idiota, São Paulo: Planeta, 2019.


quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Descobrindo o racismo

Resultado de imagem para Cirilo e maria joaquina anos 90
Cirilo - primeira versão do Carrossel exibida no Brasil em 1991
Como a maioria das pessoas nesse país, cresci num ambiente racista. Tanto o ambiente familiar quanto o ambiente expandido. Ouvi tantas  'piadas" sobre cabelo de negro, sobre serviço de preto, ou coisa de preto. Por algum motivo, eu não nunca aceitei isso como normal. Lembro que desde pequena brigava com quem dizia essas coisas. Lembro de ter chorado algumas vezes, quando criança, porque meus tios faziam esse tipo de comentário. E o meu choro era ainda motivo para meus tios dizerem que eu ia casar com um preto, como se isso fosse algo ruim ou engraçado.

Mas na minha memória, meu primeiro contato com o racismo e com o preconceito de classe, ficou registrado de maneira muito forte. Eu tinha uns seis anos. Estava na escolinha. Eu era uma criança chata, não gostava de brincar e na hora do recreio, ficava perto dos adultos, das professoras, no caso, conversando. Num desses dias, a filha de uma professora, que também estudava na escolinha e era um ano mais nova do que eu, chegou do meu lado e disse: "sai de perto da minha mãe, você parece o Cirilo". Eu fiquei muito triste. Eu chorei. Para quem foi criança nos anos 90, sabe que o Cirilo era o menininho negro da novelinha infantil, Carrossel. O menino negro e pobre que era constantemente humilhado pela menininha branca e metida, Maria Joaquina. Quando a filha da professora me disse aquilo, eu sabia que ela queria me xingar, me ofender. Eu não era negra - inclusive o tom de pele da filha da professora não era nada diferente do meu -, mas eu era pobre. E mesmo com seis anos, eu tinha alguma noção de que eu, de algum modo, era parecida com o Cirilo. E aquilo me doeu. 

Em vários momentos da minha vida eu me lembrei dessa cena. Certamente eu a fantasiei e a reconstrui de muitos modos. Mas toda vez que eu lembro dela, sinto que desde muito cedo eu entendi que algumas pessoas achavam que a cor de outra pessoa era motivo para ela valer menos, ou para que ela tivesse que sofrer. Lembro que assistindo a novelinha infantil, eu chorei muitas vezes com as maldades da Maria Joaquina. Mas eu também sentia raiva do Cirilo, porque ele sempre dizia: "eu só quis ajudar". Porque diante das respostas mal criadas da menina loira, ele continuava gostando dela, querendo estar perto dela. Lembro do episódio que ele passa uma pasta branca na cara, pra ver se ficava branco. Aquilo era tão cruel. Outra cena que me marcou muito foi a do pai da Maria Joaquina, se não estou enganada, chorando diante do reconhecimento da maldade e do preconceito da filha. A verdade é que com o Carrossel e com a filha da professora me chamando de Cirilo, eu aprendi o que era racismo. 

Mesmo sabendo de tudo isso e mesmo me incomodando muito com as falas racistas que sempre fizeram parte do meu mundo, eu levei muito tempo para entender a profundidade do racismo e porque as cotas - para o ensino superior- eram necessárias num país como o nosso. Eu só fui entender de verdade, entender não de maneira racional, mas de maneira afetiva e emocional, quando comecei a dar aula. Quando ouvi uma professora dizendo que um dos meus alunos, que era negro, não passaria de caixa de supermercado, e que não tinha muito o que fazer por ele, 'tadinho'. Foi aí que eu entendi o que era racismo estrutural e institucional. Eu nem conhecia essas expressões. Mas entendi que quando uma criança ou adolescente tem o seu futuro predeterminado por causa da dor da sua pele, ele está numa desvantagem imensa em relação a seu colega que é branco, ainda que esteja ali, na mesma sala de aula, com os mesmos professores. 

O racismo no Brasil na maior parte do tempo tem sido velado, tem sido suavizado por comentários carregados ora do tom da 'brincadeira', ora do tom da caridade. O negro no Brasil só cabe em dois papeis: ou é malandro ou é o coitado. Se é malandro, tem que ser preso mesmo, tem que morrer, tem que pagar seja pelo que é tenha feito - por existir? Se é coitado, está lá para que algum branco de bom coração possa fazer sua caridade, sua doação, sua boa ação, do dia ou do ano. Infelizmente, no Brasil de 2019, o racismo está cada dia mais escancarado, e até encontra deputado disposto a quebrar obra de arte que discute o racismo  e o genocídio da população negra e deputado pra defender a atitude boçal e criminosa do coleguinha. 

Eu descobri o racismo muito cedo. Mas acredito que fiz muito pouco até hoje para combatê-lo. E é uma tarefa que deveria ser abraçada por todos. E começa por não rir de 'piada' sem graça, do tio ou seja lá de quem for. Por não fingir que o racismo não existe, só porque é mais cômodo. Aguçar nosso olhar para ver o racismo que nos cerca diariamente, ou que segrega as pessoas nas grandes cidades todos os dias. Da próxima vez que for a um shopping, procure enxergar as pessoas negras nesse espaço. Da próxima vez que for a um restaurante, se pergunte por que não tem negros sentados ao seu lado ou quando for ao médico ou procurar um advogado. A primeira coisa urgente a ser feita é romper com a nossa cegueira social. 

Nesse dia 20 de novembro, convido a todos a olharem e enxergarem o mundo com as cores que ele tem ou não tem em determinados lugares. Mas é preciso cuidado para não ser emburrecido por comentários como o do deputado que disse: ao entrar na favela nós vemos a maioria de negros com armas, e isso é um fato. Para não sairmos acreditando que os negros escolheram estar na favela, escolheram a marginalidade, escolheram ser pobres, escolheram ser faxineiros, porteiros, diaristas, seguranças. Que os negros escolheram que não querem ser médicos, advogados, professores, engenheiros, músicos, poetas, atores, juízes, presidente da república, senador ou deputado. Os fatos estão aí, e precisam ser interpretados. Nunca é tarde para nos perguntarmos por que é assim. Nunca é tarde para reconhecermos o que 300 anos de escravidão fizeram com o povo negro no nosso país. Nunca é tarde para reconhecermos que houve uma política de branqueamento da população e um esforço oficial de apagamento do povo negro e de sua história.



segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Quando o Posto Ipiranga virou ministro da economia do Brasil

"Um menino, desde cedo, sabe que ele é um ser de responsabilidade quando tem de poupar. Os ricos capitalizam seus recursos. Os pobres consomem tudo" (Paulo Guedes - ministro da economia- Congresso em Foco)

Três afirmações, mas tem tanta coisa errada aí que é difícil até começar. Mas comecemos pelo machismo: "um menino, desde cedo, sabe que ele é um ser de responsabilidade quando tem de poupar". Na cabeça do Posto Ipiranga de Bolsonaro, responsabilidade é coisa de menino, assim como, "todo brasileiro é apaixonado por carro". Mas o menino só sabe que é um ser de responsabilidade quando poupa. Os outros meninos, que não poupam, seriam irresponsáveis? Como as meninas? Ou será que aí já não é mais uma questão de gênero, e sim de classe? Afinal, para o chicago boy transvestido de ministro, "Os ricos capitalizam seus recursos. Os pobres consomem tudo".

Segundo alguns dicionários, uma das definições de pobre é desprovido de recursos próprios. Nesse caso, o que exatamente  seria o "tudo" que os pobres consomem, segundo Guedes? Esse "tudo" de que fala o Posto Ipiranga seria o salário - quando o pobre tem emprego? Um salário de R$ 998,00? Realmente esses pobres são uns irresponsáveis! Como não são capazes de poupar seus recursos? Ou ainda de capitalizar seus recursos?

Que os ricos capitalizem seus recursos é algo bastante compreensível (e esperado), mas que os desprovidos de recursos o façam, para mim é uma questão de mágica. Será que o Posto Ipiranga agora também é mágico? E estaria disposto a 'compartilhar' seus truques para poupar quando se ganha R$ 998,00? Vejamos, nem precisa ser tão pobre assim, vamos pensar num pobre que receba R$ 1500,00, tem uma família com três pessoas - o ser de responsabilidade, a esposa (um ser sem responsabilidades, que portanto, não trabalha nem poupa) e um filho -, morando numa cidade como Campinas, pagando aluguel (média de 800,00), água, luz, transporte, alimentação... Quais das despesas básicas o ser de responsabilidade deveria deixar de pagar para poupar? E se deixasse de pagar, ainda seria um ser de responsabilidade, na concepção do Guedes?

Se a declaração de Paulo Guedes não é exemplo de pura e completa perversidade (bem ao estilo do ex-ministro chileno que mandou a população acordar mais cedo para pagar mais barato pelo metrô), não sei o que é. Não é possível que ele não tenha nenhum conhecimento da realidade do país. Pensando bem, é possível sim, é bem possível. Afinal, ele caiu de paraquedas no setor público, nunca se interessou por números que não fossem os do setor financeiro. E quando se trata de números, estatísticas e dados sobre a população brasileira, se perguntar demais a gente descobre coisa que não queria saber. Suas declarações, assim como suas intenções de reformas, são provas contundentes da sua incapacidade para estar onde está. Mas também são demonstrações do desprezo que uma certa elite brasileira sempre teve em relação aos pobres. Mas agora, nesse Brasil de Bolsonaros e Postos Ipirangas, esse desprezo se tornou política pública, e o escárnio é escancarado.

Se o Congresso Nacional, capitaneado por Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, referendar as propostas de deforma tributária que os cabeças-de-planilha estão arquitetando - com previsão de aumento de tributação sobre rendimento da poupança, cesta básica, remédios, rescisão trabalhista e muito mais -, nós veremos o Brasil disparar rumo a miséria. Se tudo der certo - tudo que o Posto Ipiranga prometeu fazer: privatizar tudo, reforma tributária, reforma administrativa - os pobres e parte da classe média vão se f.... de verde e amarelo, e graças a irresponsabilidade típica dessa gente, não vão poupar nada. Já Guedes, sua família e todos os outros seres de responsabilidades vão continuar capitalizando seus recursos (ou seria os recursos saqueados dos pobres?...).

Quem dera os pobres não poupassem indignação com esse desgoverno. Quem dera não poupassem revolta contra o escárnio do Posto Ipiranga. Quem dera não poupassem esforços para imitar nossos vizinhos chilenos. Por enquanto estamos apenas fazendo reserva, não vejo a hora de transbordar...





domingo, 3 de novembro de 2019

Sobre imunidade parlamentar e os abusos do clã Bolsonaro

Tal pai: 
"Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim" (Jair Bolsonaro - 18/04/2016)

Tal filho:
"Vai chegar um momento em que a situação vai ser igual a do final dos anos 60 no Brasil, quando sequestravam aeronaves, quando executavam-se e sequestravam-se grandes autoridades, cônsules, embaixadores, execução de policiais, de militares. Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar ter uma resposta. E a resposta pode ser via um novo AI-5, via uma legislação aprovada através de um plebiscito, como aconteceu na Itália. Alguma resposta vai ter que ser dada" (Eduardo Bolsonaro - 28/10/2019)

Em 2016, o Congresso Nacional foi covarde e irresponsável diante da declaração criminosa de Jair Bolsonaro. Ele fez apologia à tortura e a um torturador e saiu de lá como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. Em 2019, o Congresso Nacional cometerá o mesmo erro? Ou veremos o Congresso agir com independência e coragem? A cassação de Eduardo Bolsonaro seria uma prova de que ainda há deputados comprometidos com a democracia.

Diante da declaração de Eduardo Bolsonaro, deputado federal por São Paulo, muitos jornalistas e comentaristas dos principais meios de comunicação lembraram o que diz nossas leis sobre fazer apologia ao crime ou estimular atos de ruptura institucional. Vejamos o que diz a Constituição Federal: 
Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;
A Lei de Segurança Nacional (7.170/1983) é ainda mais clara:
Art. 22 – [É considerado crime] fazer, em público, propaganda:
I – de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social;
Pena: detenção, de 1 a 4 anos.
§ 1º – A pena é aumentada de um terço quando a propaganda for feita em local de trabalho ou por meio de rádio ou televisão.
§ 2º – Sujeita-se à mesma pena quem distribui ou redistribui.
Art. 23 – Incitar:
I – à subversão da ordem política ou social;
II – à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis;
III – à luta com violência entre as classes sociais;
IV – à prática de qualquer dos crimes previstos nesta Lei.
Pena: reclusão, de 1 a 4 anos.
Além disso, o Código Penal (Decreto-Lei 2.848/1940) em seu artigo 286 assim reza: "Incitar, publicamente, a prática de crime: Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa."

Tanto o filho quanto o pai, diante da repercussão negativa de suas falas abjetas e desprezíveis,  recorreram à Imunidade Parlamentar para se esquivarem de suas responsabilidades. Não é a primeira vez que um parlamentar tenta se esconder atrás dessa tal imunidade. Quando ouvimos suas justificativas, parece que Imunidade Parlamentar é salvaguarda para uma pessoa ser completamente idiota e dizer todo tipo de insulto, mentira, asneira e fazer apologia ao que há de pior no mundo e no ser humano. Mas será que é assim mesmo? O que é, de fato, Imunidade Parlamentar? Qual sua função?

Vejamos o que diz a Constituição Federal:
“Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. O artigo 53 claramente diz respeito a situações diretamente ligadas ao exercício do mandato, tendo em vista a preservação do parlamentar, protegendo-os contra abusos e violações por parte do poder executivo e do judiciário. No entanto, é mesma Constituição que em seu artigo 55 prevê a perda do mandato, caso as atitudes do parlamentar sejam incompatíveis com o decoro parlamentar. E esclarece: "É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas."

Mas o que seria considerado abuso das prerrogativas? Um deputado eleito pelo voto popular insinuar numa entrevista, portanto, fora das atividades intrínsecas do cargo, fechar o congresso nacional seria ou não um abuso das suas prerrogativas? Um deputado eleito, dentro do Congresso, defender um torturador e as práticas de tortura, quando o estado de direito condena tais práticas, seria ou não um abuso das suas prerrogativas? O processo de cassação de Eduardo Bolsonaro pode ser, como seu irmão Flávio (aquele que ainda nos deve explicações sobre o Queiroz) e seu pai-presidente se adiantaram para classificar, entendido como 'perseguição política'? Ou estaria o clã Bolsonaro querendo artificialmente criar sua própria versão do paradoxo da tolerância segundo o qual a tolerância ilimitada levaria ao desaparecimento da tolerância? No caso do clã, as prerrogativas democráticas ilimitadas levariam ao desaparecimento da própria democracia.

Se o Congresso Nacional se deixar levar pelas escusas do clã Bolsonaro,  poderá dar o golpe de misericórdia na já muito debilitada democracia brasileira. O primeiro golpe foi no dia 18/04/2016 quando permitiu que Bolsonaro-pai saísse do Plenário como se não tivesse feito nada demais. Rodrigo Maia terá coragem para se afirmar como alguém capaz de manter o Congresso em linha com a Constituição Federal ou se mostrará mais um oportunista disposto a rifar a democracia?

terça-feira, 29 de outubro de 2019

O curioso caso da imprensa brasileira. Ou sobre a seletividade do bom senso quando o assunto é a reforma da previdência.

(...) se a imprensa tiver de se tornar algum dia realmente o "quarto poder", ela precisará ser protegida do poder governamental e da pressão social com zelo ainda maior que o poder judiciário, pois a importantíssima função política de fornecer informações é exercida, em termos estritos, exteriormente ao domínio político; não envolve, ou não deveria envolver nenhuma ação ou decisão. Arendt, Hannah, Verdade e Política, in Entre o Passado e o Futuro, São Paulo: Perspectiva, 2016.

O papel da imprensa é fundamental numa democracia. O jornalista profissional, nessa perspectiva, tem uma responsabilidade imensurável na garantia de um ambiente verdadeiramente democrático e na garantia da "mais essencial liberdade política, o direito à informação não-manipulada dos fatos, sem a qual a liberdade de opinião não passa de uma farsa cruel", como nos diz Arendt em A mentira na política (Perspectiva, 2017). Mas por que lembrar disso? Primeiro porque, infelizmente, por variados motivos, vivemos um período de ataques e tentativas de desmoralização da imprensa por parte de autoridades políticas, no Brasil e mundo afora. Segundo porque a imprensa e os jornalistas me parecem ter uma parcela considerável de responsabilidade pelo descrédito do qual têm sido vítimas. A cobertura feita pela imprensa brasileira sobre a reforma da previdência é um bom exemplo dessa responsabilidade. Não houve debate, foi uma narrativa única de defesa da reforma. Houve aqui e ali alguma tentativa de amenizar a narrativa apocalíptica com a qual o governo ameaçava a população, a fim de empurrar goela abaixo a reforma. Aqueles que se opunham a proposta do governo não tiveram espaço nos grandes meios de comunicação: jornais impressos, TV e revistas. Era como se não tivéssemos opção, era isso ou isso.

No início de ano, quando Paulo Guedes apresentou a PEC 06/2019, chamada, falaciosamente, de Reforma da Previdência, Reinaldo Azevedo foi um dos defensores da tal reforma. Segundo ele, em fevereiro de 2019, "a proposta da reforma da Previdência era boa". E seguia o articulista: "entendo que a reforma da Previdência, escoimados eventuais exageros, é socialmente justa e economicamente "progressista", para quem gosta dessa palavra. E não apenas porque corta mais de quem tem mais, mas porque o déficit previdenciário consome recursos que podem e devem ser aplicados no combate às tais iniquidades." Segundo Azevedo, a proposta era boa, apesar do governo ser ruim e, por isso, terminava seu artigo no seguinte tom: "Temos uma proposta boa de reforma e um governo ruim. Porque ela é boa, não deveria ser desfigurada. Porque ele é ruim, não deve ser poupado."

A tal 'proposta boa e que não deveria ser desfigurada', incluía a capitalização individual sem contribuição patronal, defendida por Paulo Guedes usando como referência a reforma feita no Chile, durante a ditadura militar. Mas durante o primeiro semestre de 2019, não tivemos um jornalista de peso, e com isso me refiro àqueles profissionais que atuam na grande mídia, incluído aí Reinaldo Azevedo, que fizesse uma leitura crítica sobre os efeitos daquela reforma no Chile. Mas eis que o segundo semestre chegou e explode no Chile manifestações cada vez mais duras e violentas, mostrando para todos a insatisfação dos chilenos, aqueles que, segundo Guedes, vivem na Suíça da América Latina.

Só então nossos jornalistas parecem ter acordado do sono profundo de Bela Adormecida que os acometia no semestre anterior. Enquanto dormiam, sonhavam com os indicadores: crescimento do PIB, renda per capita, e era tudo uma maravilha. Quando pareciam que iam acordar, falaram besteira, por má-vontade ou má-fé, tentando colocar no mesmo lugar a proposta do PDT de reforma da previdência e aquela defendida pelo Guedes (Lamentavelmente a deputada Tábata Amaral também tem recorrido a essa falácia de comparar a proposta do PDT com aquela aprovada no Congresso) ou sinalizando que no Chile havia problemas, assim, superficialmente, com meia dúzia de palavras, só para não dizer que não falei, como fez Miriam Leitão. Ainda agora tem jornalista querendo enganar incautos afirmando que na proposta do governo estavam previstos três pilares e não apenas a capitalização pura e simples. Balela! Os três pilares estão previstos na proposta do PDT, defendida por Ciro Gomes e Mauro Benevides, e eram tratados como 'oposição desvairada' quando, no primeiro semestre de 2019, denunciavam as inconsequências do modelo chileno. Ambos pareciam profetas no deserto (no caso, no youtube, nas redes sociais, universidades, sindicatos, enfim, na estrada) uma vez que não tiveram espaço para apresentar a proposta que defendiam nos grandes meios de comunicação. Enquanto isso, todo dia, Jornal Nacional, CBN e todos os outros meios, martelando que sem reforma da previdência o Brasil estaria condenado ao caos.

Mas diante do caos no Chile, qual não é a minha surpresa: 'O Chile não é a maravilha que os liberais defendem', manchete no site da CBN, da coluna da Miriam Leitão, em 22/10. Agora a colunista resolveu mostrar quais os problemas que temos no Chile: desigualdade alarmante, serviços como ensino e saúde privatizados e, ora vejam, uma aposentadoria que empobrece a população de idosos, graças a reforma da previdência feita durante a ditadura militar, que introduziu o regime de capitalização individual, sem contribuição patronal, a mesma que era a menina dos olhos do Guedes...

E o que dizer da coluna do Reinaldo Azevedo na Folha no dia 25/10: "Não há mais o que privatizar por lá nem reforma da Previdência a fazer. Já foi feita. Vigora no país, desde 1981, o regime de capitalização, sem contribuição empresarial, o que é uma aberração." Sim, o Reinaldo está falando do Chile, e agora 'a capitalização sem contribuição empresarial é uma aberração'. Mas quando o Guedes apresentou sua proposta, incluindo a capitalização à la Chile, ela era boa, podia até conter eventuais exageros, mas era boa, e não deveria ser desfigurada. Reinaldo chegou a afirmar em seu programa O é da coisa, que 'até onde tinha visto, apoiava na íntegra a reforma da previdência do governo'. Ao falar da capitalização, Azevedo afirma que no Chile esse modelo está dando problemas, aposentadorias muito pequenas, e que era preciso pensar numa solução para que no Brasil isso não acontecesse. Para ele, a capitalização seria optativa, coisa que não era nada clara na proposta do governo. Muito pelo contrário, na página 55 da PEC, tópico 56, falava-se em "novo regime, que substituirá o RGPS". Se a ideia era substituir, não se tratava de algo optativo. É o que lemos na  página 54, tópico 55: "propõe-se introduzir, em caráter obrigatório, a capitalização tanto no RGPS quanto nos RPPS" (Talvez o Reinaldo não tenha lido essas páginas quando declarou seu apoio integral à proposta...). O regime de capitalização apresentado pelo governo era, no limite, um cheque em branco, pois o texto previa uma Lei complementar de iniciativa do poder executivo que iria instituir o novo regime. Tudo que sabíamos sobre o tal novo regime, era que Guedes se orientava pelo modelo chileno. Reinaldo amenizava os problemas que poderiam decorrer da reforma e dizia que 'a sociedade' teria que discutir. Simples assim. O problema era, e ainda é: 'a sociedade'  estava/está bem informada sobre o assunto? Conforme análise que fiz em outro texto, a discussão sobre a PEC 06/2019 esteve desde o início emaranhada em falácias, e uma delas é chamar de Reforma da Previdência o que era uma proposta de Reforma da Seguridade Social.

Pois é, fico feliz em ver que as pessoas, inclusive os jornalistas, podem recuperar o bom senso e o compromisso com os fatos. A imprensa e os profissionais do jornalismo não falham apenas quando manipulam fatos - isso é muito grave! -, mas também quando omitem os fatos. Durante o primeiro semestre, o objetivo da imprensa parecia ser aprovar a reforma da previdência. Para alcançar este fim, valia fechar os olhos para as mazelas que já se faziam presentes no país ali do lado. Quando Guedes publicamente afirmava que o modelo chileno era sua inspiração, não houve compromisso da imprensa e dos jornalistas em se debruçar sobre a realidade do Chile e informar a população brasileira das consequências que aquele modelo idealizado pelo ministro trouxe para os chilenos. Felizmente, a capitalização foi barrada no Congresso. Mas tramita no Senado uma PEC paralela que prevê a volta do sistema de capitalização. Agora, diante das convulsões vividas pelo Chile, restará a Paulo Guedes e sua turma fazer como Queiroz, dar uma sumidinha, fingir que não é com eles. Essa estratégia já é bem conhecida desse governo. Mas é preocupante que a imprensa brasileira também a adote. Informar a população, principalmente sobre temas que têm potencial de impactar diretamente a vida de milhões de pessoas, é tarefa que não pode ser feita de acordo com os humores do mercado ou interesses particulares de grupos. A seletividade do bom senso não pode ser estratégia do bom jornalismo. E, nesse contexto, a mudança no tom adotado essa semana por Miriam Leitão e Reinaldo Azevedo é um exemplo de como a imprensa e os jornalistas estão falhando na sua tarefa fundamental.


quinta-feira, 17 de outubro de 2019

O dia que o Coringa virou político (e não foi de Gothan)

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(Imagem : Divulgação Warner Bros)
1- A ficção que parece realidade

O filme Coringa (Joker- 2019), dirigido por Todd Phillips e com a impressionante atuação de Joaquin Phoenix, é mais um filme que faz a gente sair do cinema sem rumo e mudo. Para quem não gosta de filmes de super-herói ou desse universo das HQs, ainda vale a pena considerar ver Coringa. Se você é professor/educador e trabalha com adolescentes, mais um motivo para vê-lo. Se você se incomoda com a banalização da violência promovida ultimamente por autoridades públicas, outro bom motivo para ir ao cinema e conferir Coringa. Mas o meu objetivo não é fazer propaganda do filme. Então vamos ao que interessa.  (Aviso: o texto a seguir contém spoilers!)

Na telona vemos o retrato de um indivíduo em sofrimento psíquico e emocional, um loser dentro de uma sociedade totalmente doente e disfuncional. Um palhaço que tenta ganhar a vida fazendo propaganda para comércios de rua. Há lixo por todos os lados, barulho, gente andando feito zumbi por uma cidade suja, escura e muito feia. O protagonista vive num prédio que mais parece um edifício abandonado. Mora com uma mãe adoentada, frágil, que passa os dias diante da TV assistindo a programas de humor e noticiários, uma alternância entre o riso provocado por piadas de qualidade duvidosa e o horror diário da cidade, enquanto espera a chegada do correio, de alguma resposta do ex-patrão para quem trabalhou no passado. Ela acredita que aquele bom homem quando souber como ela e o filho vivem, certamente virá em seu socorro. Entre o cuidado da mãe e o trabalho, o personagem frequenta sessões de terapia num cômodo claustrofóbico, com as paredes tomadas por estantes entulhadas de papéis, onde ele consegue um papel que lhe garante medicamentos de graça. O quadro é desolador. Mas Arthur Fleck quer ser comediante e numa espécie de diário anota seus rascunhos para um show de stand-up. A vida, por sua vez, insiste em bater no personagem: adolescentes roubam sua placa de anúncio, ele tenta recuperá-la e leva uma surra dos moleques que acabam por quebrar a placa. O chefe chama Arthur e diz que tem muitas reclamações dos clientes, o dono da loja reclama a placa que ele perdeu, Arthur tenta se justificar e leva bronca. Os colegas de trabalho, outros palhaços, riem e zombam de Arthur. Um deles tem a brilhante ideia de oferecer uma arma ao personagem, para que ele se defenda de bandidos e moleques que roubam tudo e fazem maldades. Entre muitas coisas ruins que lhe acontece, Arhtur é mandado embora do emprego e é avisado de que o programa de saúde que frequentava semanalmente foi cancelado: não teria mais reunião nem remédios. Na volta para casa, três homens bem vestidos (de terno e gravata) e bêbados, depois de importunarem uma jovem, partem para cima de Arthur e mais uma vez ele é espancado.

A cidade tomada pela sujeira - montanhas de sacos de lixo pelas ruas e muita pichação - e pela miséria é o cenário perfeito para que a revolta e a violência se alastrem e junto com eles o ódio aos ricos, uma pequena parcela daquela sociedade decadente que segue imune a todos os dramas vividos pela massa. Uma elite que vai ao teatro e ao cinema com suas roupas e chapéus elegantes, confiantes de que desfrutam daquilo que merecem porque se esforçaram para ter aquela vida. O sonho de Fleck é participar do famoso programa de humor da TV. Um dia, um vídeo seu, de um stand-up, vai parar na TV. Mas ele é ridicularizado e humilhado pelo apresentador. Em meio a tudo isso, cresce o motim na cidade, principalmente depois que três homens são assassinados no metrô por um sujeito vestido de palhaço. A cidade está fora de controle. Arruaceiros tomam conta de cada esquina: roubam, pilham, matam, botam fogo em tudo. E todos vestidos de palhaço. Pois, um sujeito da elite, Thomas Wayne, que pretendia estrear na política, apareceu na TV chamando toda aquela multidão de insatisfeitos e revoltados que de certa maneira, haviam comemorado o assassinato dos três homens de bem no metrô, de palhaços. 

 2- A realidade 

Foi também através das telas de TV que um sujeito medíocre e sem graça ganhou notoriedade num programa de humor. Ele não queria ser comediante, mas os comediantes do programa achavam que daria uma boa piada o discurso destemperado daquele político sem brilho e rejeitado pelos próprios colegas. Achavam que seus ataques preconceituosos e sua defesa descabida da ditadura poderiam ser motivos de risadas (e de pontos de audiência). Funcionou, muita gente teve notícia de um deputado sem noção, racista, homofóbico e machista. Mas não acharam graça. Levaram a sério. Acharam que ele representava bem suas próprias insatisfações. Suas falas grotescas e violentas encontraram eco numa população sofrida e cansada de sentir feita de palhaço por uma classe política que finge bons modos, que faz discurso politicamente correto, mas que não sente nenhum pudor em aceitar suborno, em participar de esquemas ilícitos, em se sentar na mesa dos poderosos e fazer acordos indecorosos. 

Mas o deputado-comediante era diferente. Ele era sincero, dizia exatamente o que todos queriam dizer. E foi assim, fazendo sinal de arminha com as mãos, defendendo o armamento da população, a pena de morte, negando a história e mentindo descaradamente, que esse sujeito virou presidente. Embora chamado de mito por seus seguidores, o que pode nos remeter a figura do herói tal qual nos mitos gregos, o sujeito em questão nada tem de herói. E se quisermos reduzir o mundo ao maniqueísmo das HQs, certo mesmo seria chamá-lo de vilão. No entanto, como nos mostra o filme Coringa, a personalidade do vilão pode ser muito complexa. De modo que, ao contar a história da construção dessa personalidade de vilão, cai por terra o próprio maniqueísmo herói-vilão. Diferente do que esbravejava o deputado-comediante, bandido não é uma condição de nascença. Não se nasce bandido, não se nasce vilão. Mas muitos fatores podem nos ajudar a entender como alguém se torna um vilão ou um bandido. E contar essa história, ao contrário das acusações feitas ao filme Coringa, não é justificar suas ações de vilão, nem retirar sua responsabilidade pelas ações cometidas. Mas pode ser uma maneira de evitarmos que outros vilões apareçam. Humanizar o vilão, mostrar a complexidade de ser humano, pode servir como vacina ou antídoto num mundo sujo e tão propício a espalhar sua sujeira aos quatro ventos. 

3- A realidade que parece ficção

O deputado-comediante-sem-graça que virou presidente teve uma infância pobre numa região que, como muitas outras de seu país, era dominada por uma elite, um coronel ou coisa do tipo. Ele, quando menino, experimentou esse sentimento de revolta, tão comum a quem em sua condição se vê diante da fartura de uns poucos. Não parece fazer sentido, os perrengues diários de muitos versus a abundância e excessos de uns poucos: casas luxuosas, carros, piscinas, crianças que podem tomar sorvetes, enquanto se vive numa pequena casa de dois quartos, com mais cinco irmãos e é preciso trabalhar desde garoto para que a família tenha como sobreviver. Dá raiva mesmo. Sentimos que é injusto. Essa talvez tenha sido a primeira e mais profunda experiência do nosso personagem com o sentimento de 'ódio aos ricos'.

O deputado-comediante quando adolescente assistiu a uma caçada, de mocinhos contra bandido, e desde então, achou que o mundo era assim, divido entre bons e maus. E ele decidiu que estaria do lado dos 'bons'. Foi para o exército. A guerra entre mocinhos e bandidos, heróis e vilões, foi cultivada na sua curta inteligência. Misturando esse episódio com aquele ´ódio aos ricos' da infância, nosso personagem escolheu como seu inimigo um dos herdeiros daquela família poderosa da pequena cidade de sua meninice. E a ditadura que prendeu e matou seu inimigo, se transformou em sua grande heroína. A ditadura fez justiça contra aquela família mesquinha de ricos da sua infância pobre. 

Mas não era bem no exército que ele queria ficar - talvez lhe faltasse destreza com as armas, embora devote a elas certa fixação fálica, pois mesmo armado, certa vez foi assaltado e levaram sua moto. E foi depois de quase liderar um motim no exército por aumento de soldo e de um plano frustrado de explodir bombas em quartéis do Exército que ele se tornou político. 

Se o Exército era o lugar dos mocinhos, ao se rebelar contra o exército, nosso personagem estaria indo para o outro lado, o dos bandidos? E foi na condição de político que ele defendeu bandidos sem nenhuma cerimônia: fez apologia às milícias (e, hoje sabemos, manteve amizade próxima com milicianos, inclusive empregando familiares deles no seu gabinete). Diz o ditado que filho de peixe, peixinho é, e no caso do nosso personagem, os três filhos são políticos e também empregaram milicianos e familiares em seus gabinetes. Que fique claro, não acredito que seja uma questão de natureza ou essência. Mas não duvidamos que o exemplo e o hábito tenham forjado na prole os mesmos maus comportamentos do progenitor.

Nosso personagem, assim como o Coringa, talvez tenha uma dificuldade em discernir entre realidade e imaginação. Pior, talvez tenha sérios problemas em aceitar que a realidade não se submete à sua imaginação. Essa insubordinação o deixa muito contrariado, e é preciso atacar a realidade, violentá-la a fim que de que se adeque aos seus desejos.

O que não falta são pessoas dizendo que nosso personagem, tal qual Arthur Fleck, sofre de algum transtorno mental. Mas até hoje essas acusações são só boatos. Mas quem se dispõe a analisar as falas do nosso personagem, rapidamente encontra: sinais claros de ressentimento; uma insegurança mal disfarçada que aparece na forma de ataques a tudo e a todos; alguns temas recorrentes em seus discursos e ataques que revelam possíveis traumas de infância ou baixa autoestima; uma mania de grandeza e ao mesmo tempo de perseguição, comportamentos tipicamente paranoicos. 

Muito provavelmente nosso personagem, da mesma maneira que Arthur Fleck, precisou de ajuda e, é bem provável, também se viu abandonado e sozinho. Não sabemos bem quem foram seus algozes, mas é possível arriscar que aquela família rica da sua infância personificou o alvo do seu ódio ao mesmo tempo que figurava como culpada por sua pobreza e as mazelas que certamente viveu junto de sua família na infância. Talvez de maneira até inconsciente, seu objetivo sempre tenha sido ocupar o lugar dos seus inimigos. A sua ganância foi observada durante a passagem pelo exército. Hoje, na pequena cidade da sua infância, é o seu sobrenome que se destaca no comércio local. Hoje sua família é a dona da cidade. Chegar à presidência era tão impossível, que ainda hoje, claramente, nosso personagem não consegue lidar com a realidade e vive no eterno papel do candidato, no palanque, fazendo promessas e bravatas, instigando as massas à violência e ao caos.

Com um palhaço na presidência, lendo as notícias a gente ri, mas é de puro desespero, de nervoso. Estamos experimentando a doença de Fleck. Porque o presidente-palhaço continua sem graça, o país cada dia mais parece aquela cidade feia e suja da telona, a miséria cresce, o número de desempregados e da violência também, enquanto partes do país ardem em fogo, tal qual a cena final do filme. E quando o presidente abre a boca, como seu discurso tresloucado na ONU, o que se ouve é uma piada de mau gosto. Ninguém ri. Mas é bem possível que o mundo vire as costas para esse país. E como não se trata de um enredo de HQ, não adianta esperar um herói para nos salvar. Uma coisa é certa: só o caos é a garantia de que ele continuará reinando, e por isso também nosso personagem não pode abandonar seu papel: o de palhaço que põe fogo no circo.

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