terça-feira, 24 de março de 2020

Educação a distância em tempos de pandemia: dúvidas, angústias e algumas reflexões

 Estudante, Ensino, A Distância, Escola

Eu faço parte de um grupo de pessoas privilegiadas. Não sou rica, estou bem longe disso, mas meus privilégios são muitos: tenho formação de nível superior por uma universidade pública de ótima qualidade, sou funcionária pública federal concursada e, nesse contexto de pandemia, estou no conforto da minha casa, enquanto milhares de pessoas por esse país - inclusive parentes meus - seguem suas vidas e seus trabalhos expostos ao vírus. É no conforto da minha casa que abro o meu computador e escrevo esse texto que, posteriormente, irei compartilhar através da internet. 

Mas as coisas não foram sempre assim. Em 2004 quando eu saí da pequena Delfim Moreira para morar em Campinas, minha família achava que era uma loucura. E talvez fosse mesmo. Eu deixei o emprego que eu tinha, com carteira assinada, para vir fazer um curso de Filosofia. Meu pai, que sempre ganhou pouco mais do que um salário mínimo, não tinha como me mandar dinheiro. Eu sabia de tudo isso, mas sabia também que havia na Unicamp programas de assistência estudantil - bolsas, aquelas que o atual ministro da educação se orgulha de nunca ter precisado de nenhuma, mas eu precisava. Tive bolsa moradia, bolsa trabalho e bolsa alimentação. Pouco tempo depois troquei a bolsa trabalho - se não estou enganada, na época era algo em torno de 500,00, por uma bolsa de iniciação científica da Cnpq, que não chegava a R$ 300,00. Foi uma escolha. Eu achava que seria bom para a minha formação. E foi. Depois consegui uma bolsa Fapesp, que pagava melhor, mas foram anos de muita economia. Passei bons anos sem comprar uma calça ou um tênis. Mas deu tudo certo. Me formei, entrei no mestrado, concluí meu mestrado. Eu não tinha computador na moradia, contei com a ajuda e solidariedade de muitos amigos para fazer meus relatórios aos finais de semana e madrugadas afora. Quando essa semana tenho que ler de um colega que "quem quer estudar arruma um jeito", eu tenho que concordar, afinal eu sempre arranjei meus jeitos. Mas minha questão é: será que está certo naturalizar e até romantizar os sacrifícios que algumas pessoas precisam fazer para conseguir estudar? 

Essa reflexão surge num momento muito delicado que enfrentamos essa pandemia do coronavírus. As mortes já ultrapassam 17 mil no mundo. Itália, Espanha, EUA já convivem com centenas de morte diárias. Infelizmente nas próximas semanas essa será a nossa realidade. E dadas as nossas condições sociais de extrema desigualdade e pobreza, temo muito que o cenário seja ainda mais catastrófico que aquele que se vê hoje na Europa. Desde semana passada algumas instituições de ensino, de maneira prudente, optaram por suspender aulas presenciais. E foi aí que começou a panaceia da EaD - Educação a Distância. Algumas decisões tomadas a toque de caixa, com as melhores das intenções - eu realmente acredito e quero acreditar nisso - lançaram vários professores nesse novo cenário. E o desespero não foi só de professores - que nunca pensaram em trabalhar com suas disciplinas na modalidade EaD - este é o meu caso específico -, mas também de muitos alunos que, de repente, foram bombardeados por um sem fim de materiais e ferramentas e lives e afins. Pois muitos professores pareciam já estar com seus cursos totalmente adaptados para a nova modalidade de ensino-aprendizagem. Confesso, não sou eficiente como esses colegas, estou atrasada, me sinto perdida e cobrada por coisas que não estavam nos meus planos.

Os otimistas, aqueles que têm tudo sob controle, eficientes e inovadores, dão notícias: minhas aulas estão sendo um sucesso, os alunos estão adorando! fiz uma live e de uma turma de 40 tinha 31; eu digo, a maioria tem acesso; os alunos se adaptam fácil, na verdade eles já vivem na internet, vai ser muito mais tranquilo; eles vão dar um jeito, é só querer; além do mais, EaD não é só live, tem muitas outras ferramentas; e é muito simples, qualquer um consegue, até as crianças dão conta; na verdade, trabalhar de casa é ótimo, depois poderíamos tentar continuar assim...

Mas também chegam notícias do outro lado, dos mais diversos lugares, e as angústias, dúvidas e questionamentos de repente se encontram: mas os alunos têm acesso à internet? eles têm computador em casa? eles terão condições de estudar? como está a situação familiar desses alunos? os pais continuam trabalhando? já estavam desempregados? e o auxílio estudantil, continuarão recebendo mesmo com as aulas presenciais suspensas? e os celulares, comportam todas essas ferramentas de EaD? os pacotes de dados permitem que participem de lives? têm irmãos menores para cuidar? têm pessoas doentes em casa? estão esgotados e com medo? têm pai alcoólatra e violento em casa? tem um bebê pequeno e a mãe acha que agora que não têm aulas é sua função cuidar do bebê? são tantas coisas...

E entre uma conversa e outra, vemos que não é só entre os alunos que podem existir dificuldades: gente, estou em casa com um adolescente e duas crianças, não é fácil preparar aulas e material desse jeito; nossa, estou com duas crianças em casa e estou ficando louca; eu só tenho uma filha, mas é pequena, não entende que preciso trabalhar; nossa, dispensei a diarista, tenho que cuidar da casa, do almoço, e dar conta dessas crianças que já estão inquietas porque não podem sair de casa; tenho que cuidar da minha casa e dos meus pais; estou cuidando da minha mãe e com a cabeça estourando com essas notícias desastrosas, não consigo me concentrar e tenho que gerenciar essas salas de aula virtuais, com alunos reclamando que estão com dificuldades e alunos justificando que alguns colegas não conseguirão acessar o material porque não têm acesso à internet...

Sim, estamos todos vivendo tempos difíceis. Estamos no meio de uma pandemia, estamos em isolamento, veremos as prateleiras do supermercado se esvaziarem, veremos muitas mortes, ficaremos sem ver pessoas queridas. Não estamos vivendo um período de normalidade - no caso do Brasil, eu diria que faz tempo que não estamos vivendo tempos normais, mas que foram sendo normalizados, infelizmente. Não dá para continuar como se tudo estivesse normal. Não dá para trabalharmos para normalizar essa situação de exceção. 

Eu confesso que as tecnologias não são exatamente meu assunto preferido. Eu não gosto de EaD, como aluna, fiz uma pós por EaD. Eu sou uma pessoa disciplinada, estudar sozinha não foi um problema, mas eu senti muita falta da interação, das discussões, da possibilidade de fazer uma pergunta durante a "aula". Enfim, parecia sempre que estava faltando alguma coisa. Como professora, eu uso o mínimo de tecnologia no meu cotidiano: uso e-mail para me comunicar com alunos, uso o sistema para notas e demais tipos de burocracias necessárias, uso o celular para músicas e pesquisas em sala. O básico mesmo. Não consigo me imaginar dando aulas por videoaulas ou por lives, sem poder ver os alunos. Mas não são apenas meus gostos pessoais por EaD que me colocam na defensiva quando vejo a exaltação dessa modalidade de ensino. Meus problemas são também de ordem pedagógica-metodológica e socioemocional.

Ouço e leio muitas coisas que mostram que há uma grande confusão entre as ferramentas que podem nos auxiliar no processo de ensino-aprendizagem e a metodologia, propriamente dita. Já ouvi muita gente defendendo inovação na educação, falando mal de uma tal metodologia tradicional, e apostando todas as sua fichas na tecnologia. Mas vamos por partes. O que seria uma videoaula ou uma live? Para mim seria um ótimo exemplo de uma metodologia tradicional de ensino, centrada no professor, que figura como fonte do conhecimento, que é despejado no aluno, receptor e folha em branco, que permanece totalmente passivo nesse processo. O fato de dispormos de tecnologia que permita gravar essa aula-palestra e enviá-la para muitas pessoas via internet, não muda em nada a metodologia e a concepção de ensino-aprendizagem que está por trás dessa ação. Eu sei que na live há a possibilidade de interação, mas ela também é comprometida e limitada. E alguém pode dizer: Francine, mas estamos em tempos de exceção. Eu respondo, sim, mas estamos nos esforçando por normalizar esse tempo de exceção e futuramente esse momento poderá ser defendido como o novo normal. Passada a crise, quem garante que não vamos embarcar na defesa pura e simples da EaD para todos os níveis da educação? Durante campanha eleitoral, o então candidato Jair Bolsonaro, defendia em seu programa EaD desde o Ensino Fundamental. O tempo de agora é de exceção, e temos que tomar cuidado para não torná-lo o novo normal. 

Do ponto de vista socioemocional, o tempo de exceção que vivemos, de reclusão, isolamento ou afastamento social - todas essas expressões soam incômodas porque justamente nos falam dessa condição que não nos é nada natural - trará graves consequências emocionais e psicológicas e poderá agravar quadros que já agora são complicados. Isso somado às condições econômicas e sociais que também irão se deteriorar, e muito mais rapidamente entre aqueles que já são normalmente mais fragilizados e penalizados pela desigualdade brutal que assola esse país, nos apontam para um cenário complexo. Se não tivermos um olhar empático, solidário e humano para com nossos alunos e seus familiares, todas as nossas boas intenções poderão se tornar fardos ainda mais pesados para serem carregados por eles. Acho muito precipitado afirmações como: não podemos perder o semestre; não devemos alterar o calendário e outras na mesma direção. Nos próximos meses (abril, maio e junho) deveremos enfrentar o cenário que ora se faz presente na Itália. Não temos como prever quando retornaremos à normalidade nem se haverá essa normalidade. 

Teremos uma sociedade devastada por mortes e privações das mais variadas e uma economia estagnada. O Brasil ainda tem um cenário político desafiador, com um governo incapaz de se ater a realidade, que delira, que vive de fantasias, que cria inimigos e crises para além das que já estão nos afetando. Sinceramente, não sei como ter cabeça para iniciar agora, nesse contexto, uma formação para TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação) ou para EaD. 

Do conforto da minha casa, do alto do meu privilégio nesse momento da minha vida, eu me pego pensando naqueles que são tratados como "exceção", que não fazem parte da "maioria" que supostamente terá condições físicas, mentais, emocionais para seguir seus cursos e disciplinas. Aqueles que "depois a gente vê o que faz" ou que "no retorno a gente faz um reforço". Eu estive durante a maior parte da minha vida do outro lado, sendo a "exceção". Durante minha graduação e mestrado fui sempre exceção - vinha de família pobre e de baixa escolaridade, de escola pública, tinha começado a trabalhar bem cedo, não tinha tido acesso a bens culturais como cinema, teatro, museu, era uma mulher num curso predominantemente de homens. E sim, tive que dar meu jeito, que me esforçar, que correr atrás. E não é agora como professora que eu fiquei "folgada" ou "braço-curto" como alguns colegas parecem sugerir ao ignorar todas as dificuldades que os alunos e mesmo alguns colegas irão ter que enfrentar para garantir uma "certa normalidade". A questão é: até quando vamos seguir "normalizando" as situações de exceção? É justo jogar o ônus do "se vira, dá seu jeito" nas costas dos alunos? Sinto que isso passa por um concepção de "meritocracia à brasileira". Valorizamos os esforços do vencedor sem problematizar a ideia de vencedores. Romantizamos os sacrifícios em nome da recompensa. 

Enfim, sei que já me estendi demais, talvez poucos cheguem até o fim desse texto. Eu sigo com minhas angustias e inquietações, sem perder de vista as "exceções". Afinal, nesse momento não se trata de um critério de eleição no qual "a maioria" vence. Se um está ficando para trás, estamos falhando, e é simples assim.

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