quarta-feira, 8 de abril de 2020

Espaço para terraplanistas e negacionistas na imprensa - sempre é o caso de ouvir o "outro lado"?

Jornais, Leeuwarder Courant, Imprensa, Notícias
imagem retirada do Pixaby
 













 
O conhecimento científico e aquilo que é cientificamente cognoscível diferem da opinião e do opinável.  (Aristóteles: Segundos Analíticos I, 30) 

Faz tempo espalhou-se entre nós - acredito que uma herança do espírito iluminista - e tornou-se senso comum a ideia de que "devemos respeitar as opiniões alheias" e junto com essa máxima outras correlatas que dão notícia de que "todo mundo pode ter uma opinião sobre qualquer coisa". Mas será que é assim mesmo? Será que tudo é passível de uma "opinião"? Será que "qualquer um" pode ter opinião "sobre qualquer coisa"? Será que todas as "opiniões" devem ser respeitadas? E, na esfera pública, devemos dar voz a "toda e qualquer opinião"? 

Para começar a conversa, o que será que entendemos por "opinião" nessas ocorrências cotidianas? No senso comum, as opiniões estão, muitas vezes, associadas a juízos de gosto ou preferências, e costumamos dizer que cada um tem "o direito" de ter a opinião que for: sorvete de chocolate é melhor que de baunilha; o jogador x é melhor que o jogador y; o candidato A é melhor que o candidato B. Mas também associam "opinião" a situações "polêmicas" nas quais é preciso assumir "um lado", pois ou seremos a favor ou contra alguma coisa, por exemplo: A é a favor do aborto, mas eu sou contra, essa é minha opinião! Esses tipos de "opiniões" têm pouco ou nenhum interesse para um debate qualificado, seja na filosofia ou na Ciência, ou no bom jornalismo.

Desde a antiguidade, a opinião (doxa, em grego) foi vista como problemática. E a diferença entre ter opinião a respeito de algo e ter conhecimento sobre esse mesmo algo foi muito bem delimitada desde Sócrates. Mas já na Grécia Antiga, ao falar da doxa, Sócrates, Platão e Aristóteles não estavam interessados em juízos de gosto ou em declarações a favor ou contra alguma coisa. A doxa era um tipo de declaração que pretendia ser verdadeira, que pretendia falar sobre um estado de coisas no mundo, dizer como as coisas são. Para os filósofos, a opinião é a pretensão de dizer algo sobre algo, acompanhada da pretensão de que isso seja verdadeiro. Mas aquele que expressa uma opinião não possuí domínio das causas da relação que ele pretende enunciar. Algumas vezes, aquele enunciado acontece de ser verdadeiro, ainda que quem tem a opinião não saiba por que ela é verdadeira. Como disse Aristóteles, saber a causa, ter conhecimento do por que X é Y,  é o que diferencia quem tem ciência (episteme) de quem tem apenas opinião.

Guardadas as devidas proporções, pois a noção de Ciência da época de Aristóteles passou por muitas modificações ao longo do tempo, ainda segue válida a distinção entre o conhecimento científico e a mera opinião. Mas uma vez que um enunciado é reconhecido pelos pares como sendo um enunciado científico, uma opinião que contraria tal enunciado não pode ser tratada como se tivesse o mesmo peso num debate público. A respeito do mundo, do funcionamento do mundo, dos fenômenos que envolvem os seres vivos, e isso inclui uma doença como a Covid-19, devemos nos guiar pela Ciência e pelos resultados obtidos através de testes e estudos rigorosamente guiados pelo método científico. O cenário atual a respeito da Covid-19 é o seguinte: de um lado, dados empíricos e projeções matemáticas a partir das quais é possível desenhar dois cenários: a) aumento de casos de pessoas infectadas numa quantidade que rapidamente levaria os sistemas de saúde ao colapso (sem isolamento social), b)  a redução do número de casos, seguida do achatamento da curva de contaminação, diminuindo a sobrecarga dos sistemas de saúde (com isolamento social); do outro lado, pessoas que afirmam, sem nenhum tipo de evidência ou estudo sério, que o isolamento social aumentou o número de casos de contaminados, ou que a "epidemia", assim como outras, vai seguir seu ritmo com ou sem isolamento social. Será que podemos tratar essas afirmações como sendo equivalentes, como se tratando de "visões" ou "opiniões" distintas sobre o assunto? 

Ao abrir espaço para que o deputado Osmar Terra pudesse defender "sua visão", a Folha de São Paulo cometeu um erro. Ou melhor, a Folha repetiu um erro que já vem cometendo faz tempo: tratar opinião como equivalente ao conhecimento científico na seção "Tendências/Debates". Há alguns meses, nessa mesma seção, a Folha abriu espaço para um defensor do design inteligente, de um lado, e um cientista, do outro. Para alguém desavisado, soa como se as duas posições fossem equivalentes, e que o design inteligente, uma versão pseudocientífica do criacionismo, devesse ser tomada como um contraponto da teoria da evolução. A própria pergunta/tema para o debate em questão - O design inteligente, tido como vertente do criacionismo, é uma teoria científica válida? - poderia ser chamada de misleading ou enganadora. Pois pode levar algumas pessoas a pensarem que esse é um problema legítimo no contexto da ciência hoje. Ao repensar sobre esse exemplo, me parece que o problema estaria no fato de algum cientista se submeter a estar do outro lado, aceitar o debate. Explico: ao promover esse "debate", entre uma posição de fé e uma posição científica, a Folha rebaixa o conhecimento científico ao status de opinião.

O caso de Osmar Terra é mais complexo. Terra é um político, atualmente um deputado federal pelo MDB. A política, mas não a ciência, depende das opiniões. Assim já dizia Hannah Arendt: "o pensamento político é representativo. Formo uma opinião considerando um dado tema de diferentes pontos de vista, fazendo presentes em minha mente as posições que estão ausentes; isto é, eu os represento". Mas se a política se constrói a partir de opiniões, tais opiniões não podem estar descoladas da realidade, dos fatos. Como político, é esperado que Osmar Terra opere no campo das opiniões. Mas também seria esperado que suas opiniões estivessem ancoradas em fatos. Mas em seu artigo na Folha, embora não possa esconder suas aspirações políticas, Terra pretende dar "ares" científicos para sua "opinião". Mas Terra falha em sua empreitada, pois a Ciência, ainda mais do que a política, está ancorada nos fatos. Osmar Terra não tem ao seu lado nem a verdade fatual, nem a verdade racional, própria da Ciência e da Filosofia, para seguir acompanhando Arendt.

Osmar Terra faz afirmações que não correspondem à realidade - houve aumento de contaminação com o isolamento social. Portanto, falta-lhe a verdade fatual e, por pretender dizer o que é, declarando o que não é, podemos afirmar que o deputado mente. Para sustentar sua opinião de que deveríamos acabar com o isolamento social, Terra distorce os resultados de um estudo científico. Ainda que o estudo citado em seu texto tenha conclusões distintas do estudo científico ao qual Terra pretende se opor, os próprios estudiosos não apresentam tais resultados como conclusivos, afirmam que ainda precisam fazer testes e, portanto, não se juntariam ao deputado pedindo o fim do isolamento, como de fato não fizeram no país de origem do estudo, a Inglaterra. Falta verdade racional, pois não há de fato um estudo científico capaz de embasar suas afirmações, e novamente o deputado mente. A mentira e a política, como também já observou Hannah Arendt, têm uma longa história juntas. E por último, mas não menos importante, Arendt nos lembra que "a autêntica qualidade de uma opinião, como de um julgamento, depende de sua imparcialidade". Imparcialidade que não existe no texto de Osmar Terra, que faz questão de manifestar seu total apoio ao presidente Bolsonaro e sua defesa do fim do isolamento social neste contexto de pandemia.

Infelizmente a mentira tem sido tolerada e nos últimos tempos até se transformado em arma e estratégia na política. Hannah Arendt também nos alertou para o importante papel da imprensa como uma das guardiãs da verdade fatual, chamando nossa atenção para os perigos aos quais a impressa estaria sujeita, tanto de sofrer pressão social quanto governamental. Se a imprensa precisa se manter vigilante para não sucumbir às pressões governamentais, também precisa se manter alerta para não ceder às pressões sociais que pretendem reduzir o conhecimento científico a mera questão de opinião. A pressão social nestes tempos estranhos em que vivemos muitas vezes se manifesta numa confusa exigência de se ouvir, sempre, os dois lados. Mas tem horas que "o outro lado" não existe, é só negacionismo ou pseudociência mesmo.

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