sexta-feira, 10 de abril de 2020

Estamos enfrentando uma pandemia, não estamos numa guerra!

Desde que o terror da pandemia causada pelo novo coronavírus se tornou patente, e o número de mortos passou a assustar a todos nas páginas dos jornais e nas telas das TVs mundo afora, políticos, jornalistas e intelectuais começaram a dizer que estávamos em "guerra". No Brasil, o presidente da Câmara dos deputados, Rodrigo Maia, junto com outros sete deputados, apresentou uma PEC - Proposta de Emenda Constitucional - logo apelidada de PEC do Orçamento de Guerra. Entre outras coisas, essa PEC, já aprovada pela Câmara e que segue para votação no Senado, permitirá ao Banco Central comprar e vender títulos públicos e privados, ampliando assim o papel do BC no combate à crise gerada pelo coronavírus. Mas será que "guerra" é a melhor palavra para nomear o que estamos vivendo? Quais as consequências dessa comparação entre o estado de caos gerado pelo novo coronavírus e um contexto de guerra? Quem pode se beneficiar da narrativa da guerra? 

Enquanto o novo coronavírus se espalhava pelo mundo, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, fingia que tudo não passava de histeria. Acusou a mídia de criar pânico, disse que era só uma gripezinha. Bolsonaro esteve nos EUA e quando voltou, soubemos dias depois, trazia cerca de 25 membros de sua comitiva estavam contaminados pelo novo coronavírus. O próprio presidente era suspeito de estar contaminado. Mesmo assim, na semana em que os primeiros casos eram registrados no país, Bolsonaro foi às ruas encontrar apoiadores do seu governo que haviam marcado atos contra o STF e contra o Congresso. 

Passado o momento da negação - depois de dizer em pronunciamento oficial em cadeia nacional de rádio e tv que tudo não passava de histeria, que ele era um ex-atleta e que se pegasse a doença seria como uma gripezinha ou um resfriadinho, o presidente ativou seu modo obsessivo compulsivo e passou a defender publicamente o uso de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da COVID-19. Sem evidências científicas que comprovem a eficácia dos medicamentos no tratamento da COVID-19, Bolsonaro passou a advogar em causa de tais fármacos, iniciando mais uma vez uma pretensa "guerra de narrativas". O deputado Osmar Terra foi um dos grandes porta-voz dessa tentativa de transformar uma questão de saúde pública em "guerra de narrativas". Espalhando fake news e distorcendo dados sobre o comportamento do novo coronavírus mundo afora, pedindo fim do isolamento social e defendendo o uso da cloroquina, o deputado, para se defender de quem o denunciava das redes sociais, cinicamente se perguntava se "não teria direito a ter uma opinião diferente". A resposta deveria ser categórica: não! Ciência não pode ser contraposta por opinião.

Para os que já estão vacinados, fica evidente que não se trata de uma "guerra de narrativas", pois os dois lados não são duas narrativas que se equivalem. De um lado temos estudos científicos sérios em busca de remédios para o combate da COVID-19 que, no entanto, ainda não dispõem de resultados suficientes para comprovar a eficácia das drogas em testes e, portanto, recomendam cautela; de outro, temos pessoas movidas pelos mais diversos interesses - políticos, ideológicos, econômicos e/ou vaidades - atropelando o processo rigoroso da ciência e, de maneira irresponsável, vendendo a salvação da lavoura. Portanto, de um lado temos uma posição baseada nos fatos, em dados empíricos, em resultados de testes clínicos e, de outro, temos "estudos" atropelados, manipulações de dados e discursos altamente ideologizados, forçando a percepção pública a acreditar que trata-se de uma "guerra de narrativas" e até mesmo uma guerra entre quem está a favor do vírus e quem está contra o vírus.

E é aqui que o uso da palavra "guerra" para se referir a pandemia pode não ser ter sido uma boa decisão. Quando se está em guerra, o inimigo é visível, identificado de outro lado do front. Além disso, dos dois lados temos agentes que irão tomar decisões e colocar em prática ações durante o confronto. E no contexto de guerra, suspende-se boa parte das regras válidas para tempos normais, de paz. E mesmo assim, é bom lembrar, que essas decisões e ações, não estão livres de serem julgadas e responsabilizadas depois de cessada a guerra. Nesse momento, o vírus que nos ameaça, ameaça a toda humanidade e não o faz mediante um ato racional, uma escolha de nos atacar e dizimar. No entanto, do lado de cá, da humanidade, a possibilidade de êxito, de sobrevivência, está diretamente ligada às decisões e ações que políticos e demais autoridades envolvidas irão tomar: comprar ou não EPIs para proteger profissionais da saúde, comprar ou não respiradores, comprar ou não testes, seguir ou não o isolamento social a fim de evitar ou, pelo menos retardar, o colapso dos sistemas de saúde. Todas essas ações são de responsabilidade de agentes racionais, que precisam tomar decisões, fazer escolhas e agir. Comparar a pandemia a um estado de guerra pode impedir que essas decisões e ações sejam devidamente julgadas e responsabilizadas, sob a justificativa de que não estamos em tempos de paz, e que, portanto, as regras de antes não valem mais.

É verdade que não podemos dizer que estamos em tempos de normalidade. Mas este fato, esta realidade que temos experimentado nos isolamentos cotidianos, em home office e demais transformações que enfrentamos nas últimas semanas, não é equivalente a dizer que estamos em guerra. Diferente de uma guerra, não estamos entrincheirados, não temos armas apontadas para nossas cabeças, não temos bombas sendo lançadas pelo outro lado, a colaboração entre países não está interditada, nossos pares não são nossos inimigos. Ao contrário, o fato de toda a humanidade estar sob a mesma ameaça, nos torna todos potenciais aliados, ampliando as possibilidades de colaboração e de um esforço coletivo para vencermos o vírus com conhecimento e com todas as ferramentas que dispomos. No entanto, enquanto predomina a "narrativa da guerra", políticos inescrupulosos como Donald Trump passam a agir como se de fato em guerra estivéssemos, e passam a eleger "inimigos", atacar instituições internacionais, racionar medicamento e materiais de segurança para outros países, escolhendo quem deve viver e quem deve morrer. Por outro lado, a "narrativa da guerra" também pode servir para pesquisadores e cientistas tão inescrupulosos quanto Trump, estimularem uma ruptura com as boas práticas científicas, com o que há de mais seguro em termos de metodologia científica, para defender posições ideológicas, como fez Paolo Zanotto em artigo na Folha de São Paulo na última segunda feira (06/04).

No artigo, intitulado "Numa guerra, não faz sentido aguardar a publicação de avaliações científicas antes de salvar vidas", Zanotto usa explicitamente da "narrativa de guerra" para defender o uso da cloroquina combinada com azitromicina no tratamento da COVID-19, ainda que não tenhamos provas da eficácia de tal combinado. Para isso, o pesquisador pretende estabelecer um paralelo entre a decisão de se usar esses e outros fármacos ainda em fase de testes no tratamento de pacientes do coronavírus e a decisão de médicos em campo de batalha, durante a Segunda Guerra Mundial, de usar água de coco como substituto de soro em soldados feridos. A história contada por Zanotto reforçaria a equivalência entre o momento atual e um contexto de guerra. O argumento do infectologista seria o seguinte: num contexto de guerra a ação moralmente correta seria fazer qualquer coisa para salvar vidas e isso seria incompatível com esperar evidências científicas; estamos numa guerra, logo devemos usar a cloroquina e outras drogas, mesmo sem eficácia comprovada, no tratamento de pacientes com COVID-19. No entanto, ainda que estejamos correndo contra o tempo em busca de tratamentos para os pacientes infectados pelo novo coronavírus, não estamos, de fato, numa guerra, e cientistas do mundo todo estão trabalhando e buscando resultados, a fim de não comprometer ainda mais a saúde das pessoas. Não é uma questão de ser contra ou a favor do uso da cloroquina ou outras drogas, mas de termos um mínimo de responsabilidade com as informações e os protocolos a serem usados. Os estudos a que Zanotto e outros têm recorrido para justificar suas opiniões não atendem a requisitos básicos da metodologia científica, o que coloca em xeque a qualidade de seus resultados.

Independentemente de ser verdade ou não que a água de coco possa ser usada como substitua de soro em situações extremas - há alguns poucos estudos científicos nesse sentido -, o que pesou foi a "história" a respeito dos soldados durante a Segunda Guerra Mundial, contada por Zanotto - que carece de confirmação, pois todas as vezes que é citada, o é de maneira superficial e sem fontes que o comprovem. Tanto é assim que imediatamente o presidente Jair Bolsonaro se pôs a contar essa "história bacana" a fim de seguir sua "guerra" contra o bom senso, contra a ciência, contra os fatos. Agindo dessa maneira, Bolsonaro tenta fugir de suas responsabilidades como chefe do executivo do país. Embora tenha tido tempo, o governo brasileiro não se preparou para enfrentar a crise causada pela COVID-19: não comprou insumos para testes, não comprou testes, não comprou respiradores nem EPIs. Ao alimentar uma suposta "guerra de narrativas" e se apoiar na "narrativa da guerra", Bolsonaro tenta se livrar dos julgamentos e da responsabilização por suas decisões e sua falta de ação enquanto presidente da República.

Se há uma guerra em curso, no caso específico do Brasil, ela se iniciou com a entrada de Jair Bolsonaro no cenário eleitoral de 2018 - para ser mais precisa, iniciou-se com aquela lorota do kit gay, ganhou espaço ao longo dos anos e se intensificou na última eleição - uma guerra que pretende suplantar a realidade com as narrativas fantasiosas de Bolsonaro e seus defensores. O que enfrentamos agora, juntamente com o resto do mundo, é uma pandemia. E para vencê-la, dependemos da boa ciência, de testes, de dados seguros e que sigam rigorosos padrões de cientificidade, de jornalismo sério comprometido com os fatos. E, por último, dependemos de que os enunciados de fato não sejam transformados em opiniões e que a verdade fatual não seja substituída por uma autoverdade.  E no caso da Ciência, precisamos de mais Átila Iamarino e menos Paolo Zanotto e quejandos.

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