domingo, 5 de abril de 2020

Carta ao Presidente

13/03/2020 - O presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), é visto caminhando pelos corredores no Palácio da Alvorada, em Brasília (DF) - Dida Sampaio/Estadão Conteúdo
O presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), é visto caminhando pelos corredores no Palácio da Alvorada, em Brasília (DF) Imagem: Dida Sampaio/Estadão Conteúdo

Bolsonaro, como o senhor não faz questão dos ritos do cargo que ocupa, também não farei. Eu não votei no senhor, e gostaria de dizer que jamais votaria no senhor nem para síndico do meu condomínio. Mas graças à decisão de uma parte dos meus concidadãos, o senhor é hoje o presidente do nosso país. Para mim é muito difícil aceitar isso. Todo dia, pela manhã, quando vejo alguma notícia na qual sou lembrada disso, sinto que estou num pesadelo e torço para acordar. Mas infelizmente vivemos num pesadelo, essa é a nossa realidade: temos um boçal, fã de torturador, misógino, racista, machista, defensor de miliciano, negacionista da ciência e delinquente genocida sentado na cadeira da presidência da república. 

Quando o senhor começou a ser conhecido pelo país aparecendo semanalmente no extinto programa CQC, eu cheguei a escrever um texto sobre o senhor: Intolerância, preconceitos e extremismos, foi lá em 2011. Quanto tempo! E quem diria que aquele deputado tosco do baixo clero viraria presidente da república. Lá em 2011, era impossível fazer essa previsão. Apesar de continuar concordando com boa parte dos meus argumentos naquele texto, reconheço hoje que fui ingênua ao achar que sua fala poderia servir de alerta, para que não nos esquecêssemos de que havia muitas pessoas que pensavam como o senhor. Eu achava, na época, que os seus eleitores fiéis nunca somariam número suficiente para elegê-lo em outro cargo. Na época, nem mesmo cogitava que pudesse ser eleito senador. Errei feio. Errei também ao pensar, naquele momento, que o que o senhor dizia eram opiniões e não causariam maiores problemas. Não eram opiniões, eram apenas ofensas e atentados, eram demonstrações de intolerância e ignorância e deveriam ter sido combatidas com seriedade. Infelizmente, quanto mais o senhor aparecia vomitando toda sorte de preconceito e ignorância, mais pessoas se empolgavam e se sentiam autorizadas a serem tão escrotas quanto o senhor, ofendendo e cometendo crimes. Sim, o senhor desde então tem promovido crimes. Com aquela conversa de combater o "politicamente correto" o senhor virou o porta-voz das maiores atrocidades já proferidas nesse país.

Mas infelizmente, tantas coisas aconteceram desde 2011, o Brasil enfrentou tantos descaminhos e as circunstâncias contextuais acabaram tornando possível a sua eleição. A sua principal arma política desde aquele tempo é a mentira. Não, a mentira não é novidade na política. Hannah Arendt, uma filósofa alemã de origem judia, que eu duvido que o senhor conheça, escreveu em 1955 que "jamais alguém pôs em dúvida que verdade e política não se dão muito bem uma com a outra". Foi também Arendt quem nos alertou para o perigo de se transformar a mentira em uma arma política. E isso passa por uma confusão intencional entre "opinião" e "fato". Sim, exatamente o que o senhor, seus filhos e seguidores vêm fazendo desde sempre. A política, como dizia Arendt, se faz a partir das opiniões - e quanto mais opiniões melhor! - mas essas opiniões precisam ter respaldo nos fatos. Os fatos estão além de acordo e consentimento - essa característica faz com que os que estão insatisfeitos com os fatos se sintam muito contrariados, porque não podem mudá-los! E é aí que entra a mentira, uma tentativa de "mudar" os fatos, de dizer algo diferente do que é. Mas essa briga com os fatos pode até ter algumas vitórias, no entanto, quando os fatos batem na porta, é muito difícil escapar deles. Não há mentira que dure para sempre!

Mas deixemos de Hannah Arendt - além de filósofa, uma mulher. Que perda de tempo a minha, está claro que o senhor é incapaz de compreendê-la. Falemos dos fatos. Nesse exato momento, quatro de abril de 2020, o Brasil tem, segundo os dados oficiais do Ministério da Saúde, 10.278 casos confirmados de pessoas contaminadas pelo Covid-19 e 432 brasileiros mortos por essa doença. O cenário não é nada animador. Mas não vamos falar do futuro, falemos do presente e do passado - de fatos. Até outro dia, o senhor estava dizendo que a pandemia anunciada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) não passava de uma "gripezinha" ou de um "resfriadinho". O senhor ainda hoje está insistindo em dizer que o isolamento físico, comprovadamente a melhor estratégia para diminuir a expansão do vírus e evitar o colapso dos sistemas de saúde, público e privado, é desnecessário. O senhor insiste ainda hoje em incentivar as pessoas a saírem de casa e irem para as ruas. O senhor, como chefe do executivo, se exime da sua responsabilidade de garantir cuidados e auxílios que permitam aos cidadãos mais vulneráveis permanecerem em casa e faz terrorismo com essa parcela da população, dizendo que eles irão morrer de fome.

Agora que escrevo esse texto, estou na minha casa, tomando uma cerveja, ouvindo boa música e tentando sobreviver à pandemia e ao pandemônio que o senhor tem criado neste país. Quer outro fato? Na última semana, o senhor usou de um programa de rádio para atacar publicamente o seu ministro da saúde. Alguém que o senhor colocou lá, para ser ministro. Um médico político - ou seria um político que também acontece de ser médico? - mas que o senhor acha que lhe falta humildade porque ele quer impor a 'vontade' dele nas orientações para o ministério e não escuta o senhor. Bom, acredito que o correto seria dizer que o Henrique Mandetta não está dando espaço para o seu voluntarismo, presidente, e prefere honrar o que resta da credibilidade médica que ele tem - sim, porque ao permanecer no governo e tentar agradar o senhor depois de tudo que o senhor disse e fez, ele já colocou em xeque uma parte considerável da credibilidade profissional dele. Manter o isolamento horizontal não é voluntarismo de Mandetta, é prática em linha com recomendações de cientistas do mundo todo. Voluntarismo é o seu, contra evidências de qualquer tipo, querendo acabar com o isolamento. E tudo isso são fatos.

Que o senhor é tosco e limitado intelectualmente, todos nós já havíamos sido devidamente informados, inclusive pelo senhor, que incansavelmente disse que não sabia nada sobre economia, nada sobre saúde, nada sobre nada e que por isso teria ministros técnicos. O que pode surpreender algumas pessoas - não a mim, que fique claro - é o senhor se negar a seguir o que seu ministro da saúde, de maneira muito técnica, propõe no combate ao covid-19. Por que eu não me surpreendo? Porque nunca alimentei nenhuma ilusão acerca da possibilidade de se colocar limite a sua burrice. Sabe por quê? O senhor é daquele tipo de ignorante que se orgulha da sua ignorância. E esse orgulho lhe tira qualquer chance de ter uma atitude sensata. O senhor quando diz não saber, não o faz dentro de um espírito socrático, não o faz com a intenção de buscar conhecer aquilo que desconhece. O senhor diz que não sabe com orgulho. Ostenta sua ignorância e sua burrice e é incapaz de perceber a tragédia dessa condição. Tragédia que hoje assola o país, conduzido ao caos pela sua burrice.

Não posso falar do futuro. Não sou adivinha, não cultivo esse tipo de "crença" como o seu guru astrólogo. Talvez ele tenha algo a dizer sobre o seu futuro. Eu só posso dizer sobre o presente. O senhor é o pior presidente que esse pobre país já teve - e olha que a disputa é acirrada - porque infelizmente já tivemos péssimos presidentes. Mas o senhor ganha. O senhor é nesse momento ridicularizado pelo mundo todo e ganhou o título de "líder dos negacionistas do Covid-19", segue com distância na liderança, aproximando-se de figuras lamentáveis como o ditador do Turcomenistão e o da Bielorrússia. O senhor é chamado de BolsoNero e suas declarações deixam correspondentes internacionais em choque. O senhor junto com o chanceler, o pior que este país já teve, conseguem deixar o mundo escandalizado com o buraco em que o Brasil caiu. Sim, buraco - hole - até seu filho sabe que é assim...

Como sairemos dessa, eu não sei. Mas eu espero que meus concidadãos, pelo menos parte deles, que votaram no senhor, entendam que o senhor é isso mesmo, um homem medíocre, covarde - que fugiu dos debates - conspiracionista, que vive com medo de golpes e fantasmas. O senhor é uma figura triste. Tão triste, que às vezes sinto pena do senhor. Não tem amigos, não confia em ninguém, é paranoico, e nesse momento deve estar se sentindo tão sozinho... Deve ser por isso que o senhor insiste em sair, em ir até os poucos "apoiadores" que ainda lhe dão ouvidos. O senhor tem medo de ficar sozinho. Mas não se preocupe, o senhor já está só.

Presidente, eu ficaria muito feliz com o seu impeachment -  e não faltam crimes para isso. Mas acho que seria muito traumático para o país neste momento e para o senhor também. Então, eu me contentaria com um "calabolso": isso mesmo, que o senhor se calasse e voltasse para os porões de onde não deveria ter saído, ou fugisse - como fez nos debates eleitorais -, inventasse qualquer motivo e fosse embora. Seria tão bom para todos. Vá para os EUA, vá se refugiar ao lado do seu guru, lá na Virgínia. Vá caçar ursos com ele. Seria um sinal de grandeza jamais dado por alguém da sua tão pequena estatura moral e intelectual. Quem sabe assim a História ainda lhe reservasse um lugar menos insignificante. Ficaria conhecido como o presidente que se retirou e livrou o país de um mal maior.

Vá em paz, presidente. É tudo que lhe desejo.

Um comentário:

Unknown disse...

Fran, por falta de outra opção, coloquei "Interessante" no seu texto. (Embora eu o ache EXCELENTE). Parabéns pelo texto e pelas reflexões. Gostei em especial da sua leitura em relação ao orgulho pela ignorância, fenômeno este que parece global. Valeria uma tese em Sociologia inclusive, investigar as raízes mais profundas desse fenômeno.
Um abraço, Daniel.

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