Eu
parei de roer as unhas. Mas você não reparou. Pensando bem, quando foi a última
vez que você reparou em mim? Semana passada, quando disse que aquele vestido
verde, que eu amava, estava me fazendo parecer velha e gorda? Ou foi no final
do mês passado, quando você me mandou tirar o batom porque estava horrível?
Talvez você realmente tenha reparado em mim no final do ano passado. Naquele
dia você me fez trocar de blusa antes de irmos para a ceia de natal, na casa
dos seus pais, porque o roxo no meu braço estava chamando muita atenção. Mas eu
parei de roer as unhas. Lembrei que, quando nos conhecemos, você elogiou as
minhas mãos. Você as segurou com delicadeza, deu um beijo em cada uma delas e
disse que era uma pena as unhas estarem muito compridas e com esmalte tão
escuro. Por meses eu apenas usei renda e mantive as unhas rentes aos dedos. E
você nunca mais elogiou as minhas mãos. Mas agora eu parei de roer as unhas. E
não foi por você. Ou foi. Não sei bem. Estou confusa. Mas me lembrei de que
você parecia sentir prazer em me ver roer as unhas até sangrar. No carro,
naquelas voltas para casa, depois de sair com os seus amigos ou com o pessoal
do seu trabalho, quando o silêncio entre nós pesava toneladas. Eu sabia o que
iria acontecer quando chegássemos em casa. Ou porque eu havia mostrado os
dentes demais ou porque havia ficado emburrada. Porque eu tinha dado corda para
algum garçom que estava me paquerando. Ou porque eu simplesmente disse algo que
desagradou algum dos seus amigos. Motivos não faltavam. Mas eu parei de roer as
unhas. E espero que você não tenha tempo para notar. Quando você chegar, a casa
estará limpa e impecável, como você gosta. A mesa já estará posta. E até a sua
cachaça já estará no copo. Eu mesma fui comprar. Fiz tudo direitinho. Desta vez
você não terá motivos para reclamar. Você leu o jornal hoje? Não, acho que não.
Espero que não. Eu li. Mais de 100 casos suspeitos de intoxicação. Onze mortes
sendo investigadas. Metanol em destilados. Talvez seja só coincidência, mas
tenho me sentido tão animada e confiante. Faz quase dois meses que eu parei de
roer as unhas e você nem reparou. Passei a sentir saudade de mim, de como eu
era antes de conhecer você. Era primavera quando nos encontramos, num bar,
depois do trabalho. Eu trabalhava naquela época. Eu não roía as unhas. Ontem eu
percebi que as primaveras e as caliandras estão floridas, as sibipirunas e os jacarandás
estão colorindo as ruas da cidade de amarelo e roxo. Eu vi da janela do nosso
quarto. Também percebi que os pássaros estão cantando, formando casais, fazendo
ninhos. Mas eu parei de roer as unhas. E amanhã vou pintá-las de vermelho
carmim. Não, talvez amanhã não. Mas em breve. E você não irá notar.
domingo, 5 de outubro de 2025
Coincidência
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Direitos autorais protegidos por
This work is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Compartilhamento pela mesma licença 3.0 Brasil License.
Sobre o que se fala
cotidiano
Poesia
Dicas
opinião
opiniões
política
utilidade pública
atualidade
atualidades
Rapidinhas
Campinas
educação
Conto
crônica
Minas Gerais
São Paulo
cinema
observações
Brasil
coisas da vida
escola
Misto
música
Delfim Moreira
Literatura
divulgação
Barão Geraldo
Bolsonaro
democracia
eleições
Filosofia
da vida
leitura
coisas que fazem bem
passeios
Comilança
clã Bolsonaro
debate público
redes sociais
revoltas
amigos
coronavírus
ensino
paixão
preconceito; atualidades
sobre fake news
séries
Dark
Futebol
amor
coisas de mineiro
coisas do mundo internético
criança
do eu profundo
façamos poesia;
final de ano; início de ano; cotidiano;
infância
pandemia
8 de março
Ciência
de irmã pra irmã
distopia
história
lembranças
mulheres
política;
ser professor (a)
tecnologia
virada cultural
Violência; Educação; utilidade pública
adolescência
autoritarismo
comunicação
consumo consciente
desabafo
economia
fascismo
férias
impressa
livros
manifestação
mau humor
mentira
mágica
pós-verdade
quarentena
racismo estrutural
reforma da previdência
sobre a vida
músicaPoesia
15 de outubro
20 de novembro
2021
Anima Mundi
EaD
Eliane Brum
Fora Bolsonaro
Itajubá
Moro
Oscar
Passarinho; Poesia; Vida
Posto Ipiranga
aborto
amizade
amor felino
animação;
assédio sexual
autoverdade
balbúrdia
baleia azul.
bolsonarismo
cabeça de planilha
consciência negra
corrupção
coti
covid-19
crime
crônica ficcional
curta; crônica;
curtas; concurso; festival curtas
curtas; crônica;
da vida;
defesa
democracia liberal
descobrindo o racismo
desinformação
direitos
discurso
divulgação; atualidades
divulgação; blogs; poesia
documentário
família
filosofia de jardim
fim das sacolinhas plásticas
frio
férias; viagens; da vida;
gata
guerra de narrativas
hipocrisia
humor
ideologia
jornalismo
lei de cotas
literatura; crônica; ficção; infância
minorias
morte
mídia
música Poesia
novidades
para rir
próxima vida
racismo institucional
rap
resenha; atualidade; interesse público; educação
saudade
saudade; coisas da vida
sentimentos
tirinhas
universidade
utopia
verdade
verdade factual
viagem
violência
2 comentários:
Amei seu texto. Espero que cachaça dele esteja batizada. Hahaha.
O genial da poesia é que, o que pensamos quando a lemos é uma pitada de contexto, uma pitada de experiência pessoal. Nesse caso... bem, nunca saberemos o final, o que torna poesia algo genial! Cada um se deleita no final que lhe aprouver!
Postar um comentário