Tinha dias em que acordava, e tudo parecia assim tão simples. Abria a janela e a luz que entrava, o cheiro de mato e terra, o canto de uns passarinhos aqui outro acolá, traziam aquela esperança esquisita de que a vida podia ser sempre bonita. Esquisita mesmo, porque no fundo não buscava pela beleza constante. Temia esquecer o que era belo. Então buscava, quase que compulsivamente, algum traço que lhe causasse aquela sensação de estranheza, de horror, que quase faziam fechar os olhos. Mas tudo isso era só pra poder aproveitar melhor a sensação posterior. Da beleza que consome cada minúsculo espaço. Da beleza que vem, às vezes, do cheiro de alguém que se aproxima, da musicalidade da voz há muito tempo esquecida, ou da flor que se abre, alí, em frente a sua janela...
Abriu a janela, fechou os olhos, e aquela beleza misturada surgiu na sua frente. Com gosto de grama molhada, com cheiro morrom avermelhado da terra nua daquele canto esquerdo do jardim. Havia prometido cobrir aquele pedaço de terra com florzinhas miúdas, de cores diferentes. Mas a promessa já tinha até se perdido. E a terra continuava lá, exalando seu cheiro morno quando a chuva caia. Demorou-se com os olhos fechados e quando os abriu foi porque sentiu o leve bater de asas de uma borboleta que desfilava na sua frente. Antes, porém, se pôs a imaginar suas cores, azul, branco e cinza. Caprichosamente misturadas... Não, era amarela. Um amarelinho bem suave, de roupinha de criança recém nascida. Brincou alí, por entre suas flores e o mato que crescia pelas beiras da cerca de madeira. Vôou, vôou, e num instante, talvez enquanto tenha piscado, ela sumiu...
Aquelas primeiras horas do dia, com aquele colorido que invadia cada pedacinho da sua alma, trouxeram aquela esperança esquisita de que a vida era bonita mesmo. Achava graça da sensação. Achava graça daquela certeza sem sentido que a tomou. Tinha os cabelos bagunçados e o coração tomado de uma felicidade boba. E ali, no interior do quarto, que foi aos poucos invadido pelos movimentos do jardim, deitado e com o rosto numa paz invejável, estava o responsável pela bagunça em seus cabelos. Que graça tinha bagunçar seus cabelos? Ela até já achava graça também. Mas era do sorriso que pairava no rosto dele enquanto deslizava os dedos por seus cabelos. Ainda dormia. E ela o observava, como quem assiste a um filme bom e no fim tem medo de se levantar da poltrona. Quer ficar mais. Quer prolongar. As letras vão subindo, a música está quase no fim, a sala está vazia, mas continua-se lá. Esperando por um milagre. Ou esperando nada! Olhava para aquele rosto, cada detalhe que já havia gravado em sua memória, com ajuda das pontas dos dedos. Olhava e sentia-se agora dentro do filme. E então as letras poderiam subir, a música acabar, mas ela estaria segura lá, bem no meio do filme!
Ele mexeu a cabeça de repente. Abriu os olhos preguiçosamente, sorriu e perguntou com aquela voz rouca de quando se acorda: "Faz tempo que você está me olhando?" Sim, fazia tempo. Mas o tempo de repente tinha se tornado tão diferente. Havia se perdido nele. Realmente parecia um filme. Poderia ser apenas uns segundos, ou minutos, mas talvez fossem horas... Deslizou as dedos nos cabelos dele. Passou para o rosto e refez aquele trajeto, passando por cada curva e detalhe. Descobria nele os caminhos que esteve procurando sem saber, reconhecia os atalhos errados que havia tomado, quando se deparava com o que realmente havia desejado encontrar. Ele fechou os olhos. Talvez fosse a luminosidade que entrava pela janela. Resolveu encostá-la novamente. Faria como as vezes que, quase num ritual religioso, retirou a fita do video e guardou na caixinha, se deliciando com a certeza de que poderia colocá-la pra rodar quando quisesse. Que aquela história bonita, que as persoangens e cada cantinho da paisagem, cada palavra, não fugiriam da fita... Fechou a janela com aquela certeza estranha de que a vida podia mesmo ser muito bonita...
Um comentário:
Com esses momentos, a vida se torna perfeita. Cada detalhe faz a maior diferença quando vem antes de um sorriso.
Quisera eu, ter momento assim agora.
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