Imagem de divulgação do livro. |
Em seu novo livro "Projeto Nacional: o dever da esperança" (LeYa, 2020), Ciro Gomes convoca os brasileiros ao dever da esperança e à luta contra o projeto de destruição nacional que está sendo implementado por esse governo. Mas seu livro é também, em muitos momentos, entre a apresentação de números e fatos históricos, um convite à revolta, à indignação e à ação coletiva, única capaz de gerar o "milagre político". Nesse sentido, o Projeto Nacional apresentado por Ciro é uma tentativa de resgatar a dignidade da política e afirmar que será apenas através dela que poderemos encontrar esperança para o nosso país. Só por isso o livro de Ciro já é uma grande contribuição ao debate público, uma vez que atravessamos um momento tão delicado da nossa vida política, no qual quem hoje ocupa a presidência se elegeu com um discurso antipolítica.
Ciro fala a partir da sua experiência de ex-prefeito, ex-governador,
ex-deputado, ex-ministro, mas também a partir de suas incursões pelo
mundo acadêmico e ainda como alguém que foi presidente da
Transnordestina Logística S.A. Ou seja, une à bagagem prática do homem
público e que enfrentou as urnas, uma bagagem do homem que também é
capaz de pensar sobre essa prática e está aberto ao debate e à produção
de conhecimento, portanto, não está preso a visões dogmáticas. Por mais
que recorra às suas experiências como político, aos êxitos seus e de seu
grupo político no Ceará, especialmente em Sobral, se coloca também
aberto ao diálogo, ciente de que suas propostas não são verdades
absolutas, mas fruto de reflexões, estudos e que podem, portanto, ser
criticadas, ampliadas, modificadas.
Na introdução Ciro apresenta o método que pretende seguir ao longo do livro e que consiste em três partes: definição do problema, seguida de um diagnóstico da situação atual e oferta de uma proposta de solução. Divido em seis capítulos, o livro não traz grandes novidades para quem tem acompanhado entrevistas, palestras e intervenções públicas de Ciro Gomes nos últimos anos, mas traz detalhamentos muito importantes sobre propostas fundamentais para a construção de um futuro com mais justiça social, menos desigualdade, mais soberania e desenvolvimento econômico, tais como as propostas de reforma política e de reforma tributária. Quanto à reforma política, talvez o ponto que mereça destaque seja a proposta de eleições em três turnos: no primeiro, a eleição de presidente e governadores; no segundo, concluiria as eleições majoritárias não resolvidas no primeiro; e, no terceiro, se realizaria as eleições para os legislativos federais e estaduais (p.177). Uma das vantagens apresentada para essa mudança é que ela "resolve um grande problema de nosso sistema que é a falta de tempo e de discussão das questões legislativas nas eleições, o que gera o famoso fenômeno da falta de memória em relação ao deputado votado nas eleições passadas" (p.177).
Como professora, vejo com muito bons olhos o destaque que Ciro dá à educação e à ciência dentro de um Projeto Nacional. Ciro nos fala da necessidade de uma revolução educacional, mas aqui tenho alguns incômodos com os termos que ele usa, com a imagem de professor que ele idealiza, e me preocupam algumas das referências e talvez parcerias que ele venha a fazer nessa área. O aprender a aprender, invocado por Ciro como sendo uma das habilidades fundamentais a ser desenvolvida nas escolas, esteve desde os anos 1990 diretamente associado a projetos neoliberais. A denúncia insistente de Ciro em relação ao fracasso do neoliberalismo não pode deixar de reconhecer esse parentesco entre as pedagogias do aprender a aprender e o neoliberalismo. Não é por outro motivo que fundações como a de Paulo Lemann tanto louvam o aprender a aprender. Como observa Demerval Saviani (História das Ideias Pedagógicas do Brasil, 2013, p.431-434), autores que abraçaram o lema aprender a aprender a partir dos anos 1990, depois do Relatório Jacques Delors, estão preocupados em adaptar os futuros trabalhadores a nova realidade de insegurança do mundo do trabalho. O aprender a aprender anda de mãos dadas com o mito do empreendedorismo, não aquele defendido por Ciro, mas aquele do neoliberalismo que hoje vende ilusões para motoristas de Uber e entregadores de Ifood.
É verdade que o aprender a aprender tem origem nos teóricos escolanovistas, dos anos 1920-30, sendo Anísio Teixeira a maior referência daquele movimento. Mas também esse movimento, bastante influenciado por seu correlato nos EUA, cujo maior expoente era John Dewey, foi bastante criticado já no final da primeira metade do século XX por ter sido responsável por uma transformação das escolas em centros vocacionais, voltados para habilidades e pouco comprometidos com conteúdos, esvaziando o próprio papel da escola (Cf. A crise na educação, Hannah Arendt). Como professora, esse discurso neoescolanovista que transforma professores em tutores ou mediadores e que aposta em habilidades e competências não me deixa confortável, ainda mais quando esse discurso é feito por Fundação Lemann e afins. A influência que tais fundações têm nas decisões de políticas públicas educacionais nos últimos anos sempre é motivo de alerta ou deveria sê-lo, afinal, a educação crítica da qual elas falam seria a mesma que o Projeto Nacional anseia? Uma educação emancipadora? Ou estariam interessados apenas no caráter adaptativo de uma educação das habilidades, capaz de formar mão de obra sempre pronta para se adaptar às demandas do mercado? Com relação à Fundação Lemann, basta vermos o perfil dos jovens por eles
apadrinhados para atuar na política para termos dimensão de qual é seu
limite de compromisso com uma educação emancipadora e crítica ou com
mudanças estruturais.
Ao falar de educação, Ciro recorre sempre ao seu case de sucesso, Sobral (CE). Nada mais justo. Mas aqui tenho outra preocupação: a proposta de valorização dos professores através de programas de meritocracia. Ainda que Sobral, em particular, e o Ceará, de forma geral, tenham resultados louváveis e invejáveis na educação, tenho muitas dúvidas acerca de programas de meritocracia, baseados em resultados de avaliações internas ou externas. As experiências que de fato vivenciei como professora da rede estadual de São Paulo foram desastrosas; políticas de bonificação que acabam, por um lado, servindo para punir professores e escolas, mais do que valorizar e, por outro, incentivos bastante pífios do ponto de vista financeiro. Mas, claro, não estou dizendo que é isso o que é feito no Ceará, apenas que é importante termos um olhar crítico a esse tipo de proposta.
Acerca dos números do Brasil no PISA, Ciro em nenhum momento fala dos Institutos Federais. Acredito que seria importante olhar para essas instituições e reconhecer seus resultados. Conforme reportagem do The Intercept, de 8 de dezembro de 2016, "se a rede federal de ensino fosse um país, em ciências — a matéria
escolhida como foco da análise desta edição — o “país das federais”
ficaria em 11º lugar no ranking internacional, um ponto acima da tida
como exemplar Coreia do Sul, que teve uma média de 516 pontos". Em dezembro de 2019, agora no jornal Gazeta do Povo, lemos que "o desempenho médio dos estudantes de 12 institutos federais e de um colégio militar que participaram da avaliação é comparável ao de jovens de nações que figuram entre as 20 melhores classificadas no ranking mundial." Espero que Ciro olhe mais para os Institutos Federais ao pensar sobre Educação e sobre a revolução tão desejada e tão necessária para essa área em nosso país. Talvez ela já tenha começado, talvez os exemplos já estejam aqui mesmo, só precisando ser ampliada.
Em que pese o heroísmo que algumas vezes vemos Ciro
atribuir a Getúlio Vargas (p.250) - será que precisamos de heróis? Não
seriam eles tão perigosos como os salvadores e os mitos (p.256)? - e sua
linguagem mais emocional e carregada de paixão ao final do livro - "E
para ajudar nosso povo a entender isso dedicarei até o último dia de
minha vida" (p.256) -, na maior parte do tempo o tom do livro é racional,
é, de fato, um convite ao debate de ideias. No geral, ao ler o novo livro de Ciro Gomes, pode-se questionar se os problemas que ele apresenta como sendo aqueles aos quais deveríamos voltar nossa atenção de fato têm a urgência por ele invocada; pode-se discordar dos diagnósticos oferecidos por ele e pode-se até mesmo rejeitar suas propostas de soluções. Mas não é possível fazer isso sem apresentar uma contraproposta, sem ter um projeto para oferecer no lugar. Aqui temos outra contribuição importantíssima de Ciro Gomes para o debate público: forçar todos aqueles que, como ele, têm pretensão de disputar a presidência do Brasil, a apresentar um projeto de país - que país querem construir - dizer como enxergam o Brasil hoje - que desafios, problemas vislumbram a frente - e como pretendem enfrentar esses problemas e desafios.
Apoiei Ciro Gomes nas eleições de 2018, estudei e acompanhei as discussões e a proposta de reforma da previdência do PDT, e depois de ler esse livro tenho ainda mais motivos para acreditar que Ciro hoje representa um projeto de Brasil com o qual eu me identifico. Como todo projeto, está sujeito a aprimoramentos e ajustes. E é também no desejo de contribuir com esse projeto que escrevo este texto e que convido a todos a lerem "Projeto Nacional: o dever da esperança". Penso que é um dever de todo aquele que se identifica como democrata acreditar no "milagre da política" e, portanto, diante de um projeto como o apresentado por Ciro, ter esperança num futuro mais justo, mais solidário, menos desigual, mais feliz para todos. Pois, como disse Hannah Arendt, "se o sentido da política é a liberdade, isso significa que nesse espaço - e em nenhum outro - temos de fato o direito de esperar milagres. Não porque fôssemos crentes em milagres, mas sim porque os homens, enquanto puderem agir, estão em condições de fazer o improvável e o incalculável e, saibam eles ou não, estão sempre fazendo" (O que é política?, Bertrand Brasil, p.44).
Um comentário:
Esclarecedor para alguém que não leu o livro do Ciro. Quando ler, vou ficar atento aos pontos que você levantou sobre educação. Espero que esse debate para a construção e desenvolvimento do Brasil seja feito daqui para frente por aqueles que se colocam como lideranças política/ partidárias e o povo atento aos discursos, propostas e ações.
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